quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Resenha de Filme: Mapas para as Estrelas


Não é de hoje que David Cronenberg se interessa pelos efeitos perniciosos que a cultura midiática exerce sobre o ser humano comum, bem como por sua estrutura de funcionamento marcada por um cinismo em dose cavalar. Lidando com a questão a partir de diferentes ângulos e abordagens, o realizador canadense a mantém como fio condutor de um filme seu e entrega Mapas para as Estrelas (Maps to the Stars, 2014), no qual trabalha com um elenco inédito em sua carreira, à exceção de Robert Pattinson, com quem repete a parceria depois de Cosmópolis (Cosmopolis, 2012). Se antes ele era o protagonista que cruzava uma metrópole caótica em uma limusine para cortar o cabelo, agora ele segue a bordo de um exemplar do veículo, dessa vez como o motorista Jerome Fontana, que presta seus serviços a Agatha Weiss (Mia Wasikowska), recém-chegada a Hollywood depois de um período internada para tratamento psiquiátrico.

Os dois são apenas dois lados de um polígono de fama, dinheiro, sucesso, obsessão e devaneio que Cronenberg traça sem pressa, atingindo picos de sarcasmo genuíno. Agatha é filha de um casal um tanto excêntrico: Stafford (John Cusack, um tanto borrachudo) desfruta de um espaço privilegiado na televisão, onde apresenta um programa de terapia motivacional, enquanto a mãe, Christina (Olivia Williams) cuida pessoalmente da carreira Benjie (Evan Bird), seu filho e astro mirim à la Justin Bieber e qualquer outro ídolo destinado à faixa etária do fim da infância e meados da adolescência. O mapa fica completo com Havana Segrand (Julianne Moore), atriz espetaculosa que sonha com a possibilidade de interpretar a própria mãe, estrela nos anos 60, em um remake produzido por um figurão do meio. Até o fim da narrativa, outros personagens não menos excêntricos têm espaço para transitar. Sobra espaço até mesmo para uma sumida Carrie Fisher, em participação discreta como uma amiga de Havana.

Munido desses estereótipos, o cineasta deita e rola em um punhado de referências, muitas delas escancaradas. No roteiro assinado por Bruce Wagner, cabem menções a Anne Hathaway, Ryan Gosling, Nicole Kidman, Demi Lovato e vários outros nomes de diferentes calibres compondo tiradas cômicas. O humor de Mapa para as Estrelas está longe de ser o politicamente correto, e a síntese dessa certeza fica estampada em Moore, à vontade em um papel à sua altura. Fazia tempo desde que essa talentosa ruiva – aqui em versão loura – não ganhava uma personagem tão instigante e complexa, apesar de toda a frivolidade aparente. Agraciada com o prêmio de melhor atriz em Cannes, ela volta a chamar a atenção para si e lembrar a uma parcela do público que é uma das melhores do mundo no que faz. Alternando razão e vislumbres da mãe falecida, ela reina em cena, mas poderia ter mais tempo para aprontar suas estripulias, já que às vezes chega a parecer coadjuvante.

Quem está na quase totalidade dos momentos é Wasikowska, dando novo atestado do quanto é versátil. É bom permanecer com os olhos vivos diante de sua Agatha, porque suas tendências piromaníacas são uma ameaça iminente. Através de sua infiltração no ambiente hollywoodiano, as pontas inicialmente soltas vão sendo conectadas e os absurdos desse castelo de relações artificiais emergem. Seu passado segue um mistério durante boa parte do tempo, e o que denuncia a existência de algo errado são suas queimaduras no rosto e nos braços, essas últimas escondidas com luvas de couro pretas. O temor dos pais de que ela se reaproxime demais do irmão acentua essa sensação, mas a mescla com uma certa inocência dá margem ao questionamento. Pattinson, por sua vez, volta a demonstrar competência e vai galgando degraus na escada do afastamento da sombra de Edward Cullen, recentemente corroborada também por seu papel em The Rover – A Caçada (The Rover, 2013).

Em meio aos excessos e a corrosão moral exibida em Mapas para as Estrelas, reside uma aleatoriedade incômoda, que deixam a impressão de uma narrativa episódica. Proposital ou não nesse sentido, a montagem poderia ter sido pensada de outra maneira. É como se as cenas tivessem sido filmadas em uma ordem convencional e posteriormente embaralhadas, deixando os rumos um tanto confusos, sobretudo na primeira hora. Entretanto, essa falta de didatismo tem o seu valor, já que demonstra a opção de Cronenberg de ter a cooperação do público na (re)construção de seu quebra-cabeças de peças patéticas. É uma faca de dois gumes, afinal. A título de comparação, o realizador tem feito em sua filmografia de uns 10 anos para cá o mesmo que Pedro Almodóvar: segue fiel às suas obsessões temáticas e criativas, mas alcançou um patamar de sofisticação que confere novo sabor a velhas manias.

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