sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Resenha de Filme: Corações Famintos


Photo1

Eleitos melhor atriz e ator no Festival de Veneza, Alba Rohrwacher e Adam Drivercomprovam logo na primeira cena de Corações Famintos (Hungry Hearts, 2014) o quanto foram merecedores do prêmio, e reiteram essa certeza ao longos das sequências posteriores. Espremidos no banheiro de um restaurante de cozinha chinesa, eles acabam presos depois que a porta emperra, e ela não suporta o cheiro horroroso das fezes dele, resultado de um desarranjo intestinal. Apresentam-se um ao outro: chamam-se Jude e Mina. Como os funcionários do lugar falam inglês muito mal, o resgate dos dois se torna difícil e eles têm algum tempo para saberem de outras informações um do outro, o suficiente para nascer um interesse a despeito da circunstância constrangedora para Jude. Na cena seguinte, já estão juntos na cama e despertam para um novo dia, em uma das várias elipses do longa de Saverio Costanzo, que adapta o romance de Marco Franzoso.

Os ângulos eminentemente frontais da câmera do diretor revelam que existe algo de incomum nesse casal, mas a certeza de que não se trata apenas de uma impressão ainda demora um pouco a chegar. Jude e Mina se casam, ele canta para ela na festa, ambos planejam o que vão fazer pelo resto da vida juntos: coisas que qualquer homem e mulher apaixonados fazem aos montes por aí. É a chegada de um bebê que desencadeia uma alteração no curso dos acontecimentos, trazendo à tona uma postura hiperprotetora de Mina em relação à criança. Parece resultado de uma consulta casual a uma vidente, que lhe diz que seu filho é uma criança índigo, dessas que vem trazer luz à Terra. Daí surge uma série de restrições, como não expor jamais o menino ao sol e manter a carne fora de seu cardápio. Inicialmente, Jude aceita as ideias de Mina, mas logo ela demonstra uma obsessão em manter o bebê em uma espécie de ritual de purificação.

A essa altura, Corações Famintos começa a apresentar sua faceta angustiante. O casal se entende cada vez menos e a dessintonia produz momentos de extremo desconforto, como pancadas morais que confirmam a vocação de Costanzo para tratar de relações com dinâmica patológica. Assim como em A Solidão dos Números Primos (La Solitudine dei Numeri Primi, 2010), outra adaptação de romance, a narrativa caminha para rumos pesados, embora este aqui seja mais carregado de tensão. Uma espiral crescente de pesadelo vai ganhando espaço e a maior transformação física é de Rohrwacher, entregue sem reservas ao papel de uma mulher que comete as maiores insanidades com a aparência mais dócil do mundo. Sua magreza excessiva apontam para uma visão de mundo disforme, acentuada na cena em a câmera a flagra bem de perto e a faz parecer o reflexo de um daqueles espelhos de parque de diversões que apresentam imagens distorcidas.

Rohrwarcher é hoje uma das atrizes mais requisitadas do cinema italiano e exibe uma tendência para personagens problemáticas. Seu biotipo esquálido é favorável nesse sentido e aqui ela retoma a parceria com Costanzo – ela era um dos números primos de seu filme anterior. É bom prestar atenção em seus trabalhos e notar aqui a desenvoltura com que atua em língua inglesa, opção do cineasta que parece ter a ver com a plateia estadunidense, reconhecidamente avessa a legendas, que já tem o filme à disposição em seu próprio idioma. Driver, por sua vez, ainda é daqueles atores que já vimos antes em algum lugar e não sabemos onde. Para os de memória fraca, vai uma ajudinha: ele foi dirigido por Noah Baumbach em Frances Ha (idem, 2013) e pelos irmãos Coen em Inside Llewyn Davis – Balada de um Homem Comum (Inside Llewyn Davis, 2013) defendendo papéis periféricos. No filme em análise, tem espaço de sobra para oferecer uma atuação modular, estampando o desespero de um homem que vê na esposa o maior risco para o próprio filho.

Entretanto, Corações Famintos tem seus defeitos, e o maior deles talvez seja a trilha sonora exagerada, conferindo tons de suspense onde o drama teria melhor cabimento: as atitudes excêntricas de Mina. Justamente nesse aspecto, que é bem utilizado na sequência da dança do casal na boate, o filme derrapa, embora não seja nada alarmante nem comprometedor do produto final. Costanzo também pesa a mão à medida que a história se aproxima de seu clímax, legitimando acusações de que tenha adotado uma abordagem sádica, a exemplo do que fazem com Michael Haneke, guardadas as devidas proporções. Em todo caso, estamos diante de um longa que comprova a força da cinematografia italiana, a despeito dos diagnósticos periódicos de que está agonizante. O ato final é uma pancada sem analgésico que impede de ficar indiferente ao que se acabou de testemunhar, mesmo que uma luz pálida se insinue no horizonte de um novo dia.

Nota do CD:
3 out of 5 stars

Nota dos Leitores:

Resenha: Por Patrick Corrêa
Ficha Técnica:
Gênero: Drama
Direção: Saverio Costanzo
Roteiro: Saverio Costanzo e Marco Franzoso (romance)
Elenco: Alba Rohrwacher, Adam Driver, Roberta Maxwell, Al Roffe, Geisha Otero, Jason Selvig, Jake Weber, David Aaron Baker, Natalie Gold, Victor Williams
Duração: 109 minutos
Produção: Chris Marsh, Riccardo Neri e Olivia Sleiter
Fotografia: Fabio Cianchetti
Música: Nicola Piovani
Distribuição: 01 Distribution

Nenhum comentário: