A trilha sonora de Rio, 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, compõe-se de obras compostas por Radamés Gnattali e canções populares do sambista Zé Keti. A música de Gnattali é executada predominantemente por orquestra de cordas e sopros, sobretudo madeiras (flauta e clarinete baixo). Temos, no entanto, a presença dos metais e da percussão (ou bateria de música popular) no trecho inicial do filme. Em termos de composição e orquestração, são partituras que se aproximam de uma sonoridade presente nos arranjos de canções populares produzidos para o rádio, veículo que na década de 1950 alcançava o seu auge no Brasil. Dessa maneira, Gnattali, arranjador da Rádio Nacional, traz para o filme uma sonoridade familiar aos cariocas, o que contribui para fortalecer a proposta do diretor: retratar um dia na vida do Rio de Janeiro, tentando aproximar-se do cotidiano do povo desta cidade. Como os próprios letreiros iniciais nos indicam: “Nelson Pereira dos Santos apresenta”, “A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”, “em Rio 40 graus”. A escolha de canções do compositor Zé Keti não deixa de ser igualmente interessante. Sobretudo se pensarmos que este sambista será figura central do show Opinião, espetáculo musical ligado ao CPC (Centro Popular de Cultura), que compartilha a mesma ideologia de esquerda proposta pelo filme de Nelson Pereira dos Santos.
Em Rio, 40 graus, é notável a forma como Gnattali utiliza o material musical muito restrito – apenas a melodia da canção A voz do morro – para compor praticamente toda a trilha sonora, com diversas variações do tema de Zé Keti de acordo com a exigência dramática de cada cena. Há apenas três momentos (das dezessete partes escritas por Gnattali) em que o tema de Zé Keti não se faz presente[1].
No começo do filme, sobre os planos que apresentam a cidade do Rio de Janeiro e os letreiros iniciais, temos quase quatro minutos de música orquestral (cordas, metais, madeiras, percussão e harpa) realizada a partir da melodia de A voz do morro. A transição que se faz desses planos gerais da cidade para o plano que apresenta o primeiro personagem subindo o morro é musicalmente interessante, pois Gnattali faz um “fade out escrito” passando de uma parte sonoramente mais densa para um momento final rarefeito, fazendo soar por último um clarinete baixo. E este instrumento iniciará a melodia da cena seguinte como veremos à frente. Apresento em seguida a melodia completa da canção de Zé Keti para que possamos compará-la com as variações propostas por Radamés[2]:
O próximo plano com presença de música se refere à primeira cena de Jorge com sua mãe doente. Temos uma melodia lenta e melancólica executada por um clarinete baixo e uma flauta. Apesar de constituir outra melodia, observamos claramente a repetição das notas iniciais do samba de Zé Keti: notas Mi, Fá e Sol. E esta melodia torna-se, então, um motivo relacionado à personagem da mãe doente (pois aparecerá novamente mais adiante).
Na sequência do menino no zoológico, quando passeia encantado pelos animais, ouvimos uma música orquestral (cordas, harpa e flauta) de caráter fortemente lírico. Mas também notamos a presença do tema de A voz do morro, sutilmente inserido nas notas iniciais da frase. A rítmica é outra, mas as alturas se mantêm. Os planos finais desta sequência são muito interessantes e a música contribui com o efeito das imagens. Os planos, em campo/contracampo, vão mostrando os animais do zoológico e o olhar da criança. E os dois últimos bichos apresentados são animais “perigosos”: primeiramente o jacaré e depois a serpente (é na beirada do tanque das cobras que o menino vem apoiar sua lata de amendoins). Em seguida, temos um plano em que a mão do guarda vem surgindo como uma serpente a dar o bote no garoto. Quando o funcionário o agarra, temos um corte seco na música. E este silêncio repentino fortalece o susto do garoto que acorda de seu sonho. De qualquer modo, na melodia lírica de seu passeio pelo zoológico, temos novamente a presença das alturas iniciais da melodia de Zé Keti (Mi-Fá-Sol). Além disso, temos uma estrutura de frase que se aproxima da construção musical de A voz do morro. Pois observamos, entre a primeira e a segunda frase, uma repetição melódica a partir de um intervalo de 2ªM abaixo (em A voz do morro também encontramos este tipo de construção e de relação intervalar entre as frases):
Já em outra sequência do filme, no momento em que o menino, no bondinho do Pão de Açúcar, corre tentando fugir de Seu Peixoto, a música ganha caráter mais ágil. O andamento se acelera e temos a presença da flauta e do pizzicato nas cordas, mas também aqui encontramos características do tema de A voz do morro em sua construção. No fragmento transcrito a seguir, os primeiros dois compassos (melodia da flauta) se assemelham à frase melódica que recobre a letra “A voz do morro sou eu mesmo sim senhor”, do samba de Zé Keti. Nos dois compassos seguintes (pizzicato das cordas) temos uma linha melódica muito próxima da melodia do trecho de “Quero mostrar ao mundo que tenho valor”. E nos compassos finais (ligado das cordas) observamos a mesma melodia de “Eu sou o samba”, mas aqui com uma transposição de 3ªm acima (Sol-Láb-Sib-Sol).
Mais à frente, ainda fugindo de Seu Peixoto, mas agora já no alto do morro, o menino arrisca-se a subir no teto do bondinho. E a música acompanha a velocidade desta fuga com uma variação muito interessante da mesma melodia. As cordas fazem o tema a partir da repetição de cada nota da frase com figurações rítmicas de semicolcheia.
Interessante é que este mesmo motivo musical apresentado acima, cheio de agilidade e leveza, é utilizado para compor uma melodia extremamente triste. No plano em que Jorge aparece atropelado, reconhecemos a melodia do samba realizada pelas cordas com uma variação de caráter triste, com andamento lento, cromatismos intervalares e uma harmonia mais dissonante que colabora para este clima de tristeza.
Enfim, em praticamente todas as partes orquestrais do filme compostas por Radamés Gnattali observamos a presença do material sonoro de A voz do morro. Além dos fragmentos citados acima, o escutamos também: na sequência da praia em que Jorge deixa sua lata de amendoim cair no mar após esbarrar em Bebeto; no momento em que o guarda leva o menino órfão para o morro com a ordem de encontrar o seu pai; após a conversa do casal Alberto e Alice que discutem o futuro e as dificuldades financeiras. Ou seja, reminiscências desta canção de Zé Keti estão sempre presentes em cenas que retratam as dificuldades do negro pobre na cidade do Rio de Janeiro.
E apenas no final temos a canção integral de Zé Keti, apresentada de maneira diegética, cantada pelos personagens do filme. Interessante este equilíbrio: a canção é executada integralmente apenas nas duas pontas de Rio, 40 graus: no início, de forma instrumental/orquestral, e no final, de forma cantada com acompanhamento de música popular. Trata-se do momento em que se dissolve uma tensão que vinha se acumulando com a ida de Valdomiro ao ensaio da escola de samba do Cabuçu (tensão enfatizada pela montagem paralela de Valdomiro andando e da escola de samba iniciando o ensaio). O espectador, que espera uma briga entre Alberto e Valdomiro, se surpreende com a amizade entre os dois e a música, que entra em seguida, ganha este sentido de comunhão e felicidade. A própria letra da canção já sugere certa alegria (“Sou eu quem levo a alegria para milhões de corações brasileiros” e “Viva o samba que está cantando esta melodia pro Brasil feliz”). E o fato da música ser cantada de maneira festiva por um coro de pessoas colabora para este clima de euforia. Entretanto, observamos uma tensão nesta sequência final: pois esta alegria da música não corresponde aos planos finais do filme, que mostram a mãe de Jorge desconsolada pela perda do filho atropelado. Assim, o que poderia sugerir um final feliz, torna-se dramático. A partir de um plano geral dos figurantes dançando, a câmera faz um giro vertical ascendente e a imagem escurece quando enquadra o céu. Vemos uma fusão para o próximo plano, no qual a câmera enquadra inicialmente o chão (a fusão do preto do céu com o preto do chão). Então, um travellingpara frente enquadra a mãe do garoto atropelado que se encontra na janela absolutamente triste e paralisada (o que é um grande contraste em relação aos personagens do plano anterior que dançam e cantam alegres). Ela está imóvel, esperando a chegada do filho. Após estetravelling para frente, a câmera faz um novo giro para cima escurecendo novamente o quadro ao enquadrar o céu escuro. E vemos uma nova fusão: a imagem do escuro do céu se funde com um plano igualmente escuro do morro não iluminado. E após um novo giro para cima, vemos o plano geral com o Cristo Redentor e a cidade do Rio de Janeiro ao fundo. A câmera inicia então uma panorâmica para apresentar a paisagem da cidade à noite até enquadrar a baía com o Pão de Açúcar – ligando os dois pontos no horizonte (o Cristo e a luz que pisca no alto do Pão de Açúcar). O letreiro de FIM sai justamente desta luz. Pois esta decupagem, algo sombria, estabelece um contraste significativo com a luminosidade do samba de Zé Keti.
Marcelo Segreto é aluno de graduação do Curso de Música da ECA-USP
[1] Trata-se da cena em que o menino entra no zoológico atrás de sua lagartixa Catarina, da cena do guarda expulsando-o do mesmo local e da cena dos meninos correndo atrás do ônibus de turismo.
[2] Todos os exemplos musicais transcritos para este trabalho foram transpostos para a tonalidade de Dó maior para facilitar a comparação entre as partes musicais analisadas.
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