segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O legado de Paulo Emílio para a cultura cinematográfica no Brasil

FOTO: DIVULGAÇÃO/CINEMATECA BRASILEIRA
 PAULO EMÍLIO FAZIA DO CINEMA INSTRUMENTO DE ANÁLISE SOCIAL E DE REFLEXÃO SOBRE A CULTURA PELA QUAL ERA PRODUZIDO

Paulo Emílio Sales Gomes foi historiador, crítico de cinema, professor e escritor. Fundador da Cinemateca Brasileira, biógrafo de Jean Vigo(cineasta francês da década de 1930), companheiro da escritora Lygia Fagundes Telles. O intelectual que se dedicou a auscultar com dedicação o cinema do século 20 responde por muitas alcunhas, e completaria cem anos em 2016.
A programação que comemora seu centenário inclui exibição de filmes, debates, cursos e seminários, em diferentes espaços na cidade de São Paulo, e vai até 17 de dezembro de 2016, data em que Paulo Emílio faria 100 anos.
Diante de uma  herança extensa, o Nexo selecionou algumas contribuições chave de Paulo Emílio para o desenvolvimento de uma cultura de fazer, ver e pensar o cinema no país. 

Primeiros tijolos de uma cultura cinematográfica no Brasil

Metodologia na crítica de cinema

Paulo Emílio não nutria, na juventude, interesse especial pelo cinema. O gosto pela literatura e pelas artes visuais foi anterior.
“O Cinema foi a última coisa que me interessou. Inicialmente, meu interesse era por literatura, política, depois artes plásticas, música. O cinema era mais por causa das namoradas, era secundário. A exceção eram os filmes de Chaplin. Em 1936, quando apareceu Tempos Modernos, eu estava preso [por conta da caça aos comunistas no Estado Novo], e muito curioso e muito frustrado por não poder ver o filme. Quando chegavam prisioneiros novos, eu perguntava se eles não tinham visto o filme”.
Paulo Emílio Sales Gomes
Em uma entrevista concedida a Cláudio Kahns, nos anos 1970, citada no site da Cinemateca Brasileira
O que primeiro o aproximou da forma de arte à qual dedicaria sua vida foi fazer parte do time da revista Clima, na década de 1940, ao lado de Antonio Cândido, Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado, Rui Coelho e Gilda de Mello e Souza. Segundo Carlos Augusto Calil, organizador e autor do prefácio do livro de escritos de Paulo Emílio “O Cinema no Século”, a Clima “inaugurou a especialização da crítica das artes e da cultura, ao abandonar o método impressionista e diletante então vigente”. Na revista, lhe coube escrever sobre cinema.
FOTO: DIVULGAÇÃO/CINEMATECA BRASILEIRA
 PAULO EMÍLIO (NO CENTRO DA FOTO, RINDO E OLHANDO PARA BAIXO) NA PRIMEIRA EDIÇÃO DO FESTIVAL DE CINEMA DE GRAMADO, EM 1973

Conviveu, na França, com André Bazin: crítico de cinema, co-fundador da revista Cahiers du Cinéma e mentor dos cineastas da Nouvelle Vague, movimento de cinema moderno que começou no fim dos anos 1950.
Paulo Emílio passou a praticar a crítica cinematográfica não como mero cinéfilo ou só um observador das características formais das obras. Em acordo com sua formação política e de historiador, fazia do cinema instrumento de análise social e de reflexão sobre a cultura que espelhava, notadamente a brasileira. Criou, através dessa prática, um método para a crítica cinematográfica brasileira ainda incipiente, em uma época em que o cinema ainda era enxergado como menor do que outras artes.
“Paulo Emílio se interessava por cinema porque o cinema interessava a toda gente.”
Carlos Augusto Calil
Professor de cinema da USP e ex-aluno de Paulo Emílio, no prefácio de “O Cinema no Século”
“Era um agudo analista dos filmes, mas não os deixava fora do contexto histórico em que eram pensados e produzidos. Sua análise era total, não parcial, dialética e não dogmática e, se não dispensava a interpretação da forma, nem por isso incorria no reducionismo formalista”
Luiz Zanin
Crítico de cinema do ‘Estadão’

A Cinemateca, projeto de uma vida

A vivência como pesquisador na Cinemateca Francesa e a convivência com Henri Langlois, diretor da instituição e um dos preservadores da cultura fílmica mais célebres da história, são parcialmente responsáveis pelo comprometimento com que Paulo Emílio se dedicou à existência de uma cinemateca brasileira.
Essa dedicação foi, no entanto, coberta de percalços e frustrações.
Paulo Emílio tentou implementar a instituição por vinte anos. Ela foi vítima de um incêndio nos anos 1950 (assim como em 69, 82 e 2016) e de dificuldades financeiras para manter-se e realizar mostras. 
“Meu caro Paulo Emílio: estávamos assistindo ao Festival Cavalcanti quando o Chicão (Vilela) veio com a história de que a Cinemateca Brasileira tinha pegado fogo e que os filmes programados não seriam passados por este motivo. (...) Todo mundo sem exceção reagia assim ‘Chi coitado do Paulo Emílio…’ e só depois punha-se a lamentar o que se perdeu. (...) Todo mundo pensava em você primeiro antes de pensar no desastre em geral. Era como se você tivesse perdido um filho, um parente próximo”.
Carta de Garino a Paulo Emílio sobre o incêndio da Cinemateca Brasileira, em 1957.
A fragilidade institucional e os consequentes riscos associados a ela, ainda que reconhecidos, não foi superada. A existência e manutenção da casa da memória do cinema brasileiro não estão a salvo mesmo hoje. Com sede em São Paulo, a cinemateca enfrentou sucessivas crises nos últimos anos e foi alvo de uma redução de impacto no seu quadro de funcionários em julho de 2016.

Apreciação do cinema brasileiro a partir de um olhar “descolonizado”

No início de sua carreira como crítico, Paulo Emílio tinha os olhos voltados para o cinema estrangeiro. Seu texto de estreia na “Clima”, inclusive, era sobre o filme “A Longa Viagem de Volta” (1940), do diretor americano John Ford. O menosprezo pela produção nacional não era incomum entre outros de sua geração.
Esta postura, que ele viria mais tarde a reconhecer como “colonizada” sofreria uma drástica alteração. A partir dos anos 1960, o crítico tomou a decisão de se dedicar exclusivamente ao cinema brasileiro.
“O fato de o cinema brasileiro não ter existido para mim, durante muito tempo, é uma coisa da qual eu tenho vergonha, eu me penitencio (...) eu acho muito triste que os de minha geração continuem a levar em consideração somente o cinema estrangeiro, portanto eu tenho a impressão de ter progredido muito em hoje só me interessar por Cinema Brasileiro”.
Paulo Emílio Sales Gomes
Em entrevista de Paulo Emílio a Carlos Reichenbach, Eder Mazini e Inácio Araújo para a revista Cinegrafia, em 1974
Paulo Emílio via seu interesse exclusivo pelo cinema feito no país natal como uma posição efetivamente moderna, imbuída do desejo de um futuro diferente e próspero para esse cinema.
Para o crítico, a experiência cultural brasileira estava escancarada nos filmes, mesmo naqueles considerados indignos da atenção da crítica por setores elitistas, como as pornochanchadas.
Seu texto “Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento” refletia sobre as características, materiais e outras, capazes de determinar e por vezes limitar a produção cinematográfica nacional:
“Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar. O fenômeno cinematográfico no Brasil testemunha e delineia muita vicissitude nacional”.

A criação do primeiro curso superior de cinema

Paulo Emílio morou em Brasília logo após a inauguração do projeto em forma de avião do arquiteto Lucio Costa, em 1960. Em 1965, foi um dos fundadores do primeiro curso superior de cinema do Brasil, na Universidade de Brasília (UnB). No contexto da Ditadura Militar, com a cassação de vários professores, a iniciativa acabou não durando. Tornou-se professor de História do Cinema Brasileiro no curso de cinema da Escola de Comunicações e Artes da USP, no final dos anos 1960.

Festival de Brasília

A Semana do Cinema Brasileiro, batizada em seguida de Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi criada por Paulo Emílio enquanto era professor da UnB. Com sua primeira edição em 1965, o Festival de Brasília é o festival de cinema mais antigo do Brasil, considerado também o mais tradicional e politizado dos festivais brasileiros.

Reconhecimento internacional

“Passou por minhas mãos o manuscrito do mais belo livro de cinema que já li. Trata-se de um livro monumental sobre Jean Vigo, sua vida, sua obra. Em oitenta páginas datilografadas, o autor P.E. Sales Gomes reconstituiu, dia após dia, a filmagem de Zéro de conduite. (...) Estou convencido de que com a publicação desse livro - teria de ser uma publicação integral - não será mais possível escrever dez linhas sobre Jean Vigo sem fazer referência a ele”.

François Truffaut
Em artigo sobre biografia de Vigo escrita por Paulo Emílio, publicado na revista Cahiers du Cinéma

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