segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Fim dos Tempos (ou sobre o acontecimento)

 
Devo confessar (talvez assim os leitores redimam-me) que o primeiro impulso para esse texto, sobre um filme, foi o simples, e aparentemente banal, “fato” de que a maioria das pessoas (pelo menos até onde tive a paciência de ler) que comentaram sobre ele, rechaçaram-no e denegriram-no. De fato, eu ainda me pergunto (tal como alguém já o havia feito), como é que M. Night Shyamalan, que nos presentou com O Sexto Sentido, vem apresentado uma sequência de filmes, no mínimo, desinteressantes.
 
Rá! Decidi tomar justamente um deles, que segundo nossos caríssimos especialistas em cinema, consideram “sem graça”, “monótono”, “previsível” e, o melhor, “clichê”. Por que, dar-me ao trabalho de tecer considerações sobre um filme tão ruim? Fácil. Responderei com uma afirmação (parafraseado, claro, pois faz um breve tempo que eu ouvi isso num churrasco), que outrora fizera um professor meu: As pessoas que não consegue conectar a linguiça que se come, justamente, no churrasco com o biquíni que as mulheres usam, jamais entenderão o que significa pensar. Rimos muito. Ninguém entendeu.
 
Antes de adentrar as considerações sobre o filme, gostaria de fazer alguns comentários sobre a tradução do título. Nomeado The happening (2008), o filme foi traduzido no Brasil para “Fim dos tempos”. Destarte de qualquer achincalhamento com relação ao título, ele possui dois problemas sérios, sendo um deles a causa da frustração de quem o assiste: (a) A perda de potência que o título, no original, possui, sendo muito mais coerente com o enredo do filme, do que a tradução. O “acontecimento”, seria bem mais plausível, ainda que perdesse o glamour e a força de impacto de sua tradução. Todavia, mantendo-se coerente com a proposta do filme, não criaria uma expectativa inexiste para uma obra de cunho, sendo eufemístico, minimalista; (b) O título da tradução, inevitavelmente, cria uma expectativa com relação aos filmes de cunho apocalíptico – cheios de desgraças naturais, mortes cinematográfica (vide 2012, naquela cena sublime dos vulcões emergindo da terra!) e ação.
 
O filme inicia-se com um evento inexplicável, fazendo com que as pessoas se matem. Primeiro pensado como ataque terrorista, as pessoas fogem dos grandes centros, em busca de abrigo. Com o passar do tempo, os protagonistas descobrem que o evento é causado pelas plantas e que atacam grandes grupos, mas que possui seu ápice no ataque individual. De fato, o filme não apresenta grandes modificações, que surpreendem o espectador, nem mesmo quando descobre-se o modus operandi dos eventos, visto que personagens secundários, logo cedo levantam essa hipótese. O que sobra de fato desse filme previsível, clichê e monótono. Nada. Essa é a resposta.
 
Minha hipótese de leitura é: o que Shyamalan faz é desviar a atenção do espectador para um enigma, que se formos observar com maior acuidade, não possui relevância para o enredo. Apenas um iniciador, talvez, que obrigue as coisas a saírem do eixo de conforto ou leve o protagonista à “ação”. O que é o centro da atenção dos filmes, que o diretor tanto deseja encobrir: justamente, o cotidiano. Ou melhor, a vacuidade das nossas vidas e uma complexa série simbólica que construímos para preencher esse espaço vazio. Esse, parece-me, é o elemento sobre o qual poderíamos validar os esforços do diretor, encobertos de clichês, como uma poeira descansa sobre um objeto que ficou muito tempo guardado, até ser esquecido.
 
Lembrando um pouco os céticos, ele, enviezadamente, coloca-nos o seguinte acontecimento: construímos nossas vidas sobre certezas, certezas que parecem petrificadas e fortificadas, mas que a qualquer dia, ao menor sinal de interesse daquilo que de fato domina nossas vidas, ou seja, o acaso, derrubas essas mesmas certezas com uma brisa primaveril. O que fazemos, quando isso sucede? Talvez, inconscientemente, nesse mal-estar gerado, o título para o português reflita melhor a sensação do que o original. É o fim dos tempos. Para uma ciência que não consegue responder apropriadamente aos problemas que a natureza lhes coloca – lembremos do início do filme com nosso protagonista dando uma aula de “ciências” e apresentando justamente esse problema. É o fim dos tempos. Para um pensamento vulgar que procura categorizar tudo, atribuir a um outro suas falhas e não pensar criticamente – afinal, o fato dos EUA estarem “sob ataque”, indicam necessariamente, “ato terrorista”. O problema das certezas é que elas não deixam espaços para as dúvidas. Sufocam todas.
 
E o mais aterrorizador de tudo. É o fim dos tempos. E ele nada tem de diferente dos demais dias. Talvez, uma pequena diferença, um acontecimento ocorrendo numa parte do planeta, sem sabermos. O maior medo: talvez ele já tenha acontecido e nem notamos. E agora: fomos acusados sem saber... Devemos aguardar a chegada da acusação e o início do processo. Desculpem-me os adoradores de Kafka, mas quando eu assisti esse filme, lembrei imediatamente dele. De fato, quem chegou até aqui, provavelmente dirá que não fiz defesa alguma das qualidades técnicas do filme, que convença qualquer um a assisti-lo. Nem o farei. Ele deixa muito a desejar nessa parte. O que me interessa descansa na sua possibilidade reflexiva, e no fato de ter lembrado-me Kafka.
 
Num dos aforismas do escritor do O Processosugiro o uso do apóstrofo "d'O Processo", ele nos diz que o Juízo é um julgamento permanente, e que ele ocorre todos os dias. E, o Juízo Final não será diferente dos demais dias. Em outro texto, ele conta a seguinte passagem: estavam sentados ao redor de uma fogueira alguns mendigos. E, mais afastado da roda, outro sem nenhuma roupa, mais miserável que os demais. Aqueles passaram a imaginar o que pediriam caso o Messias retornasse. Cada um fazia seu pedidos, desejando manjares, casas maravilhosas, joias etc. Perguntaram ao mendigo mais afastado, ao fim, o que ele pediria. Depois de um tempo em silêncio, ele respondeu que pediria para ser um majestoso rei de um poderoso império. Que esse império fosse atacado pelos inimigos, e ele avisado para fugir com vida conseguisse levar consigo uma camisa. O que ganharia ele com esse tipo de desejo, perguntaram os seus companheiros, ao que ele respondeu, uma camisa. Com isso, a vinda do Messias não promoveria grandes mudanças, mas “modificaria um pouco”.
 
O “Fim dos Tempos”, para nosso horror, lembra-nos Shyamalan poderia estar ligado a um acontecimento sem sentido, inexplicado, obrado pelo acaso, e que viria julgar-nos como em qualquer outro dia, de modo a alterar um pouco o resultado do seu processo. Sem redenção, sem expiação. Apenas, a sorte sendo lançada e determinando quem vive e quem morre. Tudo, por nada. Assim, é fácil compreender a repulsa por parte dos espectadores.
 
by Clayton Marinho

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