quarta-feira, 22 de março de 2017

Negação

A todo ano somos bombardeados por produções “inspiradas em uma incrível história real”, e afins. Sempre com seu espaço cativo em festivais, premiações e no coração do público, o subgênero dos dramas históricos atrai não somente público e crítica, como também astros renomados e grandes produções, fundeados pelo fácil apelo. Durante a temporada de premiações 2016/17 não foi diferente: filmes como Até o Último Homem, Estrelas Além do Tempo e Um Estado de Liberdade são alguns exemplos que seguem tal fórmula – quanto ao seus êxitos, isso já é outra história. E é em uma espécie de meio-termo que Negação habita.
Percorrendo fáceis caminhos narrativos – muito em parte por buscar suporte em sua “chocante história real” –, Negação inicia-se com sua protagonista Deborah Lipstadt (Rachel Weisz, A Luz Entre Oceanos), historiadora judia, lecionando didaticamente (aos seus alunos e ao próprio espectador) sobre o modus operandi daqueles que recusam-se a aceitar o Holocausto como evento histórico e verídico; ou seja, negadores. E é por implicar tal acusação em seus livros a outro historiador, David Irving (Timohy Spall, Mr. Turner), que este acaba processando-a. Enfrentando o caso na Inglaterra (com uma jurisprudência completamente diferente da norte-americana), Deborah precisará lidar com uma equipe de advogados e defensores, encabeçada por Anthony (Andrew Scott, da série Sherlock) e Richard (Tom Wilkinson, Snowden), a fim de provar que o Holocausto, de fato, ocorreu em pleno tribunal.
Por esta sinopse simples e de poucos personagens e eventos, podemos entender que tudo decorre de forma direta e ágil dentro de seu tempo representado; mas não, entre as primeiras contestações de David, ainda de maneira informal, ao início do processo e pré-júri, seis anos se passam (tudo isso em vinte minutos de filme).  Todo esse período elipsado pela fraca montagem pouco apresenta ao espectador em termos de personagens, suas características e relações. Em exceção ao primeiro embate entre Deborah e David (que irrompe uma das palestras da protagonista), a narrativa pula de evento a evento, cumprindo somente com sua conformidade narrativa, sem oferecer situações que vinculem o espectador ao caso (apesar da tocante temática) e seus personagens.
Claramente dividido em duas partes, Negação utiliza de sua primeira metade como apresentação e preparação ao caso. Mesmo não dando espaço ao personagem de David e suas convicções, em muito o filme explora a vontade de justiça e busca pela verdade (e também de provar o ocorrido) de Deborah. E para tal, todos os recursos já utilizados em filmes semelhantes são empregados no roteiro do dramaturgo David Hare (As Horas) e pela direção de Mick Jackson (O Guarda-Costas): os longos travellings acompanhados de uma suave e rançosa melodia e associados aos discursos emocionantes (e expositivos) de seus personagens, os frequentes gaguejos (que não passam de meras muletas de interpretação) do “lado bom” ante a imposição do “vilão”, a fria fotografia do clima londrino que sobrecarrega a protagonista, personagens que entoam uma comovente canção devidamente apropriada ao seu contexto.
E como se não bastasse seus inúmeros clichês, o filme também apela a outros recursos duvidosos (e não menos enfadonhos), como sobreposições de imagens e flashbacks esporádicos que situam a rotina de campos de concentração.
O pouco que compreendemos sobre David, que nos é apresentado como um verdadeiro vilão inescrupuloso e manipulador, é posto de maneira indireta e por meio do que os outros personagens têm a dizer, impossibilitando qualquer introspecção do personagem entre suas convicções e ideais. O também óbvio design de produção destaca a casa de David predominada pela cor vermelha e alguns objetos pontuais de seu cenário (como uma estante tomada por vários livros sobre Hitler). A atuação de Spall convence pelo que o roteiro oferece-o, e ganha maior proporção no avanço da trama, ocorrendo certa transição em sua compostura mas não em seus discursos.
O mesmo ocorre com Rachel Weisz; os resquícios da atriz que outrora manifestava-se por nuances são arruinados pelas linhas grandiloquentes do roteiro que a compõe, sabotando toda e qualquer expressão genuína. É notável, no entanto, a composição corporal da atriz, exibindo facilidade quanto a demonstração de sentimentos pontuais e oscilação destes em curto período de tempo, quando exigidos. E por falar em sua composição, alguns elementos de figurino, mesmo que explícitos, acentuam o estado da protagonista e sua transição: o contraste de seus figurinos com o ambiente, ou até mesmo seu penteado leve (representado aqui por uma peruca muito artificial) ante o cenário pesado.
Conduzindo sua segunda metade como um filme de tribunal, Negação novamente falha em demonstrar o mínimo de autenticidade na exploração de todos os seus elementos. A disputa judicial carece de intensidade em sua condução, com raros e oportunos momentos capazes de demonstrar qualquer tensão ou energia pelas partes. Prezando pelos embates entre o defensor de Deborah, Richard, e David – e, assim, seus diálogos –, talvez o maior mérito da produção resida aqui: a atuação de Tom Wilkinson. Incorporando trejeitos e peculiaridades, o ator faz do defensor o personagem mais humano, tolerável e respeitável de todo o filme. Convencendo dentro e fora do tribunal (ao expor um lado mais sensível dentro de toda a história, mesmo que de forma abrupta), Richard é o destaque de toda a segunda metade da metragem – e ao final desta, o único relevante.
Ao optar por não dar o devido espaço mesmo no julgamento do caso ao personagem de David e sua preparação, o personagem é asfixiado pelas conveniências do roteiro – perdendo até a carga de “jogo psicológico” que fora proposto em seu primeiro ato. Sempre atestando o diferente tratamento entre os historiadores (David é praticamente uma celebridade unânime e adorada no universo do filme) por público e imprensa, pouco é explorado em torno do absurdo de suas alegações e defesas, na tentativa, claro, de fortalecer o viés maniqueísta que percorre toda a trama.
A culminância de todos os seus defeitos e equívocos, previamente expostos, compõe o clímax da projeção. Até mesmo a tentativa (completamente descabida) de estabelecer certas rimas visuais com elementos anteriores ao final do filme é rasa e má utilizada. Propondo a inclusão de diversos debates e correntes de pensamento à envergadura do filme, em meio a um tema delicado e de fácil aceitação do espectador, Negação não corresponde nem mesmo à sua mais simples e principal tarefa (seja ela o fácil entretenimento ou a mensagem de conscientização). Temos aqui mais um exemplo de drama histórico que não sabe explorar nem mesmo seus próprios limites dentro do contexto real em que fora baseado – e ganha contornos ainda mais embaraçosos quando ultrapassa tais limites.
Nota do CD:
★★☆☆☆
Sinopse: A escritora Deborah E. Lipstadt luta para provar uma verdade histórica contra David Irving, que a acusa de difamação por declarar que ele não acredita na existência do Holocausto.
Trailer do filme:
Ficha técnica:
Gênero: Drama
Direção: Mick Jackson
Roteiro: David Hare
Elenco: Alex Jennings, Andrew Scott, Caren Pistorius, Harriet Walter, Jack Lowden, John Sessions, Mark Gatiss, Nikki Amuka-Bird, Rachel Weisz, Timothy Spall, Tom Wilkinson
Produção: Gary Foster, Russ Krasnoff
Fotografia: Haris Zambarloukos
Montador: Justine Wright
Trilha Sonora: Howard Shore
Duração: 109 min.
Ano: 2016
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Estreia: 09/03/2017 (Brasil)
Distribuidora: Sony
Estúdio: BBC Films / Krasnoff / Foster Entertainment / Participant Media / Shoebox Films
Classificação: 12 anos

Nenhum comentário: