sábado, 12 de março de 2016

"O Quarto de Jack", de Lenny Abrahamson


O Quarto de Jack (Room - 2015)

O livro de Emma Donoghue, lançado em 2010, foi inspirado no Caso Fritzl, ocorrido na Áustria alguns anos antes. Uma mulher foi mantida pelo pai por vinte e quatro anos em cativeiro com seus sete filhos, nascidos da relação incestuosa forçada. No livro, a autora provavelmente buscou inspiração também na clássica obra “O Colecionador”, de John Fowles, aliviando um pouco a carga trágica da história real, substituindo o elemento do incesto por um caso de sequestro muito parecido com o do psicopata do livro. O fator mais interessante foi narrar tudo pelo ponto de vista do menino Jack, de cinco anos, que não conhece o mundo fora do quarto onde é mantido prisioneiro com sua mãe. O filme, roteirizado pela própria autora, emula isso ao inserir eventuais narrações da criança, recurso intrusivo raramente eficiente em outras produções, mas que nesse caso trabalha a favor da história, funcionando melhor devido à atuação impecável do pequeno Jacob Tremblay.

Antes de salientar os muitos pontos positivos, preciso citar alguns detalhes que me incomodaram. O filme revela o rosto do sequestrador muito cedo, ainda no primeiro ato, e, pior, numa câmera subjetiva, representando os olhos do menino. No livro, quando eventualmente ele o encontra pela primeira vez, aquele monstro desconhecido, Jack chega a cogitar que ele tenha um rosto de pedra. Quando o homem abre os olhos, o menino então fica apavorado por descobrir que ele é humano. Donoghue, conhecedora da linguagem literária, mas sem experiência com a linguagem cinematográfica, minimizou um aspecto importante: o deslumbramento da criança com o desconhecido. Como o tempo é menor do que no livro para estabelecer essa rotina dos dois no cativeiro, esse tipo de deslize prejudica o resultado.

Mais pra frente, numa cena noturna onde um carrinho de controle remoto tem uma função angustiante no livro, o roteiro desleixadamente tira toda a força dramática da cena. Com tanta fidelidade às páginas durante a maior parte da produção, diálogos literalmente transportados para o filme, porque escolher modificar desajeitadamente um dos momentos mais impactantes? Teria sido mais eficiente dramaticamente deixar para revelar a aparência do homem na cena em que mãe e filho tentam escapar, o que potencializaria o medo da criança na situação.

O primeiro aspecto brilhante que saliento é a atuação de Brie Larson. Vale perceber como ela reage quando o filho pede um cachorro. “There’s not enough room... Space, there’s not enough space”. Ela se pune internamente por ter dito a palavra “quarto” (room) levianamente, substituindo rapidamente pela palavra “espaço”, já que ela fez a criança acreditar que nada havia além daquele ambiente em que eles vivem: o Quarto (com letra maiúscula). Já fora do cativeiro, perceba como ela segue falando em tom extremamente baixo, até mesmo quando não há ninguém por perto, evidenciando o trauma de anos sendo levada a não chamar atenção. Pequenos detalhes que demonstram o cuidado do filme, sublinhando sutilmente as consequências psicológicas da terrível experiência na personagem.

Esse recurso da ilusão mantida como forma de proteção incita reflexões que vão muito além do tema, que pode ser visto como alegoria para o sistema de crenças humano. O menino questiona a mãe sobre o mundo do sonho: “Quando sonhamos, nós entramos na TV?”. Ele acha que além das paredes há apenas o espaço sideral. Aquele é o universo que ele conhece como prisioneiro na caverna de Platão, criando possibilidades a partir dos elementos que enxerga ao seu redor. O real é apenas o que ele consegue tocar. A comida e as roupas, aos olhos dele, são trazidas pelo “Velho Nick”, o fator amedrontador, desconhecido e onisciente, que opera através da TV, por mágica. O que ele desconhece é explicado pelo sobrenatural.

A mãe, em dado momento, começa a entender que o filho, com cinco anos, já tem idade para deixar de se apoiar na muleta da ilusão, então deixa de incentivar isso nele. O objetivo outrora era fazer com que ele se acostumasse a viver naquele ambiente. Mas a única forma dela conseguir reunir forças para escapar daquela prisão é com os dois pés fincados no mundo real. Ao explicar para ele como o mundo funciona, o menino se revolta, não consegue compreender, ele precisa viver aquela ilusão, por mais desumana que seja. Num toque genial, o roteiro mostra que Jack era mais alegre em seu Quarto. Ele descobre que o mundo real, aquele universo que ele desconhecia, é todo em tons de cinza.

É no terceiro ato que o diretor Lenny Abrahamson executa uma crítica social poderosa, complementando essas reflexões despertadas desde o início. A mulher, já em casa, está sendo preparada para uma entrevista televisiva. Os maquiadores e as luzes artificiais, auxiliados pelos ângulos da câmera, reforçam o desconforto dela na situação. Não seria aquilo uma forma de prisão? O enquadramento coloca a protagonista sentada no centro, cercada de forma opressora pelos operadores de câmera. Quando a apresentadora oportunista deixa claro o enfoque sensacionalista da reportagem, pedindo que ela especule sobre o dia em que pretende contar ao filho sobre o pai dele, a mulher se mantém firme, diz que não há pai, que Jack é só dela. A apresentadora e sua equipe não conseguem esconder a frustração, já que não conseguiram extrair lágrimas e declarações melodramáticas. Ela segue tentando provocar a jovem, sem sucesso. A mídia se aproveita de seu sofrimento como forma de conquistar melhores números de audiência. A vítima é apenas uma estatística que precisa ser bem maquiada para aparecer na tela. Assim como em “Violência Gratuita”, de Michael Haneke, o roteiro insinua que o psicopata encontra cumplicidade no comportamento do povo.


Um comentário:

Anônimo disse...

Bom dia, acabei de ler sua resenha sobre o filme O Quarto de Jack e gostei muito das suas observações sobre o roteiro. Muitos dizem que ele é fiel, mas para quem leu o livro, tem mesmo uns buracos. Talvez seja pelo fato de que a autora disse ter feito primeiro o roteiro, antes mesmo de escrever (ou terminar) o livro. Isso explica certas discrepâncias, talvez mais pela falta de experiência dela com roteirização, pois seu texto é maravilhoso. é claro que o filme tem mais acertos que erros, como por exemplo uma certa androginia do menino, não só pelo cabelo grande, mas pelos detalhes de como ele por exemplo tira o cabelo dos olhos, um gesto nitidamente feminino, já que seu único modelo presente é feminino, e criança nessa idade aprende mais pela imitação. No entanto, me decepcionou muito as ausencias de personagens do livro (o irmão, a cunhada, e principalmente a prima do menino) a cena do shopping também fez falta. Acho que faltou mostrar a interação do Jack com cenas externas, com outras pessoas, outras crianças. Ele no livro diz tantas coisas sobre como ele via as relaçôes dos adultos com seus filhos, como era diferente da relaçao dele com a mãe, e isso se perde muito no filme. Acho que a autora, apenas pela falta de domínio, não deveria ter adaptado o livro. Nem sempre o autor tem o mesmo êxito na palavra e na tela. Lembro que Nabokov adaptou Lolita Para o cinema. Talvez a época não tenha permitido transpor literalmente o texto, mas apesar da seu talento, o filme não fez juz ao livro, mesmo tendo um gênio como Kubrick na direção (a 2a versão então é pra esquecer, só salva a música de Morricone). Um abraço.