Como é que o futebol se tornou uma paixão nacional? Em clima de Jogos Olímpicos, está em cartaz em São Paulo e no Rio de Janeiro o documentário Miller & Fried: As Origens do País do Futebol, de Luiz Ferraz.
Em pouco mais de uma hora, o longa relembra as histórias dos dois principais nomes do início do esporte bretão por aqui: Charles Miller e Arthur Friedenreich. Para contar essa história, o diretor escalou John Mills e Luiz Carlos Duarte, os biógrafos de Charles Milles e Arthur Friedenreich. O documentário ainda conta a participação de Carlos Miller Neto e também dos jornalistas Celso Unzelte, Paulo Vinícius Coelho e Marcelo Duarte. Por meio de depoimentos e pesquisa de fotos, vídeos, dados e curiosidades, a produção conduz o espectador a saber como o futebol veio para o país e como passou a fazer parte da cultura nacional. O filme aborda o período entre 1870 e 1919, ano da conquista do Campeonato Sul-americano de Futebol.
O filme é entrecortado por imagens raras de arquivo e dos primeiros times do Brasil, como o Germânia (atual Esporte Clube Pinheiros), Paulistano e Spac. Na pesquisa também foram encontrados filmes raros dos primórdios do futebol, como imagens da primeira excursão de um time brasileiro pela Europa, o Paulistano, time em que Friedenreich jogou durante quase uma década e que goleou a seleção da França por 7×2 em plena Paris. Em momentos-chave da narrativa, foram produzidas encenações, como a do primeiro jogo oficial realizado e descrito anos mais tarde por Charles Miller e também do gol de Friedenreich na final do Sul-americano de 1919.
O documentário entra em cartaz no Caixa Belas Artes (São Paulo) e no Cine Odeon (Rio de Janeiro). Na sequência, deve integrar a programação da Globonews e do Canal Brasil no segundo semestre. No ano que vem o filme deve entrar no circuito de Video On Demand (VOD) em canais como NetNow e outras plataformas.
TRILHA SONORA
Os irmãos Guilherme e Gustavo Garbato compuseram músicas com referências naquelas tocadas na Europa do começo do século XX. À medida que o longa mostra a popularização do esporte no Brasil, a trilha também é transformada e ganha toques de chorinho e samba. A canção 1X0, de Pixinguinha, composta em homenagem a um clássico Brasil x Uruguai – cujo único gol foi marcado pelo próprio Friedenreich, a favor do Brasil – ganhou uma versão à la irmãos Grabato.
Confira abaixo o bate-papo com o diretor Luiz Ferraz:
Como surgiu a ideia de fazer esse documentário?
Sou um apaixonado por futebol e sempre procuro livros, curiosidades e filmes sobre o tema. Quando me deparei com a biografia “Charles Miller – O pai do futebol brasileiro” de John Mills, a primeira coisa que pensei quando acabei de ler foi em procurar um filme ou algum programa de TV sobre ele. E, para minha surpresa, não havia nada feito. Fui atrás do John e ele me confirmou isso. Foi então que decidi que deveria contar essa história no cinema. A partir de então fui desenvolvendo o roteiro e percebi que essa história não poderia se restringir ao Charles Miller, ela tinha que ser um recorte sobre a época em que ele voltou para São Paulo, em 1894. Foi quando caiu no meu colo a fenomenal biografia de Arthur Friedenreich, escrita pelo Luiz Carlos Duarte, riquíssima em detalhes. Devorei o livro em poucos dias e achei um ponto em comum entre os dois, um único jogo em que se enfrentaram. A partir daí surgiu a ideia de contar as origens do futebol no Brasil, através da histórias desses dois nomes que moram no imaginário nacional.
Como foi o processo de produção e pesquisa?
Foi um processo bastante detalhado. O documentário tem coprodução da Globo Filmes e Globonews e a pesquisa dos primórdios do futebol eu já vinha fazendo junto com o roteirista do filme, Guilherme Aguilar. Nos últimos meses antes de sairmos para campo e filmar, intensificamos a pesquisa iconográfica em diversos acervos de SP, Rio e outras cidades e principalmente a pesquisa histórica, pois todo o filme se passa entre os anos de 1870 e 1919. Dentro disso, organizamos nossas filmagens bem objetivamente em cima de todas as informações que conseguimos coletar nesse processo.
Quais foram os maiores desafios?
O principal desafio foi sem dúvida a busca por imagens em movimento dessa época. No início do século XX o cinema e as câmeras tinham acabado de serem inventados então o material disponível é bem escasso. Achamos algumas raridades fora do Brasil, como na França. Um jogo entre o Paulistano e a seleção da França, onde os brasileiros ganharam de 7×2 em plena Paris e é considerado o primeiro jogo de um time brasileiro na Europa. E lógico, a partir de 1910 as imagens começam a ser mais usuais em jornais e revistas, que documentavam tudo bem detalhado. Por causa dessa escassez tivemos que encontrar soluções cinematográficas, então optamos por reconstituir 3 jogadas descritas de época em que não se existe nenhum registro em imagens: o primeiro jogo em 1895, o único jogo entre Miller e Fried e o gol de Fried em 1919 na final do sulamericano. Nossa intenção foi interpretar esses momentos de uma maneira mais sensorial, então decidimos em não fazer nada de época e assumir essa interpretação nos tempos atuais.
O que mais te surpreendeu ao realizar esse documentário?
Primeiramente o que mais me decepcionou foi como nossa memória histórica no Brasil não é valorizada. Os acervos que existem no Brasil são muito fragmentados, e em vários o acesso é muito complicado e burocrático. Na Cinemateca Brasileira, por exemplo, achamos um material raríssimo, de jogos de futebol do início do século XX, mas nos foi negado o acesso. Durante esse processo, infelizmente, um incêndio destruiu parte do acervo, uma tristeza, pois é uma instituição fundamental para preservação da memória nacional. Positivamente, uma das coisas que mais me surpreendeu foi como a cidade de 120 anos atrás foi se modificando, foi se construindo em cima da própria história. E como tinha gente que jogava futebol nas várzeas dos rios! É a nossa essência mesmo. São fatos que passam às vezes despercebidos pelos habitantes de São Paulo, como por exemplo entender que quase todos os rios do centro hoje em dia circulam canalizados em baixo da terra, servindo apenas para escoar esgoto. Matamos nossos rios para acelerar um desenvolvimento completamente desorganizado. E consequentemente as várzeas que serviam como campo de jogo também foram morrendo.
No processo de pesquisa e entrevistas, descobriram alguma informação curiosa ou, até então, inédita?
A mais curiosa foi um jogo registrado em 1912 entre o Miller e o Friedenreich. É um jogo simbólico. Uma passagem de bastão da primeira geração do futebol representada pelo Miller, que trouxe o futebol, as regras e organizou os primeiros campeonatos, para a geração do Fried que trouxe um novo jeito de jogar futebol, mais competitivo, com habilidade, com um jeito mais objetivo de tentar fazer o gol, com lançamentos de longa distância, etc. Esse jogo é curioso, pois o Miller já havia encerrado sua carreira oficialmente e nesse encontro ele estava fora de forma, sem ritmo de jogo. E ele jogou de zagueiro marcando justamente o jovem Fried no auge de sua juventude. Não deu para o Miller, que perdeu o jogo de goleada. É importante ressaltar que essa informação foi levantada pelo Luiz Carlos Duarte, biógrafo de Friedenreich. Foi o último jogo registrado em jornais feito por Miller.
A trilha sonora exigiu um intenso e cuidadoso trabalho de pesquisa. Por que optaram por esse caminho?
O trabalho da trilha sonora foi fantástico. Os irmãos Gustavo e Guilherme Garbato compuseram toda trilha original que vai evoluindo ao longo do filme, essa era uma preocupação desde o início. O filme abrange um período de 50 anos, e a trajetória dos personagens se confunde com os estilos das músicas criadas. Então começamos com músicas mais clássicas europeias e aos poucos vamos incluindo elementos mais brasileiros, um ritmo mais cadenciado, com referências como Chiquinha Gonzaga. Mais próximo do final do filme, fizemos uma versão nova do clássico chorinho do Pixinguinha “1×0″, que ele fez justamente em homenagem ao gol do Friedenreich na final do campeonato Sulamericano de 1919. Essa foi a primeira grande glória do futebol nacional e onde decidimos acabar o filme.
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