quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Filme: Mr. Turner

 
Não é de hoje que as cinebiografias constituem um subgênero perene, do qual constam títulos ao menos uma vez por ano. Como todo (sub)gênero, tem suas marcas formais e de conteúdo, um reflexo da prática mantida ao longo do tempo. Mr. Turner (idem, 2014) é outro desses exemplares, mas passa longe da preguiça conceptiva de tantos outros realizadores, mesmo porque está nas mãos e sob os olhos de Mike Leigh, inglês responsável por obras marcantes e que imprime elegância e perícia técnica em tudo que faz, além de já ter experiência em retratar cinematograficamente vidas de pessoas que já existiram, como fez em O segredo de Vera Drake (Vera Drake, 2004). Aqui, ele deixa de lado a leveza que havia deixado transparecer em Simplesmente feliz (Happy-go-lucky, 2008) e Mais um ano (Another year, 2010) e narra os últimos 25 anos de existência de J.M.W. Turner, interpretado com gana por Timothy Spall, laureado em Cannes com o prêmio de melhor ator.
Leigh abdica de uma estrutura prototípica de cinebiografia para se concentrar em uma série de episódios cotidianos da vida do pintor, afastando a grandiloquência incômoda que acomete tantos filmes que se propõem a exibir um relato de bases históricas. Seu investimento é no homem ofuscado pelo artista, com virtudes e defeitos, problemas e alegrias, compondo um amálgama de acontecimentos comuns a qualquer mortal. Nesse sentido, o filme pode ser entediante para uma parcela do público, e some-se a isso o fato de o cineasta apresentar um roteiro à moda antiga, de desenvolvimento vagaroso, anacrônico para a plateia contemporânea, em sua maioria, avessa à escassez de ação. Quem não se importa com tal detalhe fica com uma história amparada essencialmente em Spall, presente em todas as cenas e investindo em uma composição sem grandes arroubos, no melhor estilo menos é mais.
A passagem do tempo é discreta, sem letreiros que indiquem quantos anos transcorreram. É através da caracterização de Turner e de sua empregada que podemos perceber o avanço dos dias, o envelhecimento gradual e a decrepitude que vai desgastando o corpo. Mesmo sendo bastante talentoso em sua arte, ele não gosta de ser identificado como artista ou pintor, preferindo esconder seu verdadeiro nome da dona da pensão onde se hospeda, que mais tarde viria a se tornar sua esposa e companheira para o resto da vida. Cheio de idiossincrasias, é capaz de pedir para ser amarrado ao mastro de um navio em plena tempestade a fim de retratá-la com mais veracidade em um quadro. Suas pinceladas vigorosas resultavam em lindas telas, a maioria de grandes dimensões, nas quais ele conseguia esconder até mesmo um elefante, apequenado pelo gigantismo dos céus de bronze que ocupavam um enorme espaço nas cenas.
Dispondo de 149 minutos – que realmente custam passar – Mr. Turner também enfoca a relação do artista com seu pai, marcada pelo carinho e pela cumplicidade incondicional. Quando é procurado pela ex-mulher Sarah (Ruth Sheen) por negligenciar o cuidado com as duas filhas e a neta bebê, Turner não parece se abalar, e o pai também não se esforça para chamar sua atenção diante da falta de responsabilidade. Em outro momento, ele é abordado por um conhecido que lhe pede um empréstimo de 100 libras, e responde com ironia ao pedido, confirmando sua vocação antipopular. A sequência posterior, aliás, é uma das provas do quanto Leigh centrifuga o óbvio também do ponto de vista formal, oferecendo um enquadramento que capta, ao mesmo tempo, uma conversa de Turner com dois homens que já conhecem o tal pedinte de outras ocasiões semelhantes, os três vistos de costas, e o andar do homem endividado, cada vez mais longe do campo de visão dos interlocutores. Os vários passeios de Turner pelo campo também rendem sequências de empapuçar as retinas, ressaltando o tempo todo que se trata de um artista das cores em retrato.
Por várias vezes, a sensação é a de estar diante de quadros em movimento, que se alim a uma reconstituição de época primorosa. Turner viveu na Inglaterra entre os séculos XVIII e XIX, e estudou como poucos a cor e a luz em seus quadros. Tamanho interesse por ambas as questões o aproximaram de Mary Sommerville (Lesley Manville), cientista que descobriu que a luz violeta do arco-íris, à diferença das demais tinha a propriedade de imantar uma agulha e permitir a confecção de uma espécie de bússola. Tornou-se integrante da Academia Real de Londres, mas não era uma figura bem quista por todos os seus pares, situação com a qual não demonstrava se importar. Dono de um gênio um tanto difícil – uma recorrência entre os artistas -, exprimia sua inconformidade com declarações absurdas como as de um jovem aspirante a crítico de arte com guinchos e testa franzida. É de detalhes assim que se compõe o longa de Leigh, um paciente contador de histórias.

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