O documentário “Cinema Novo”, de Eryk Rocha, sobre o movimento cinematográfico que revolucionou a produção brasileira nos anos 1960 e 1970, é tudo que você poderia e não poderia esperar.
Primeiro que ele não é um filme preocupado com uma narrativa tradicional. A produção é composta por uma colagem de cenas de 130 filmes do período, intercaladas com depoimentos dos principais expoentes do movimento como o pai do diretor, Glauber Rocha, ao lado de Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman, Cacá Diegues, Paulo César Saraceni, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade e Gustavo Dahl. Mesmo se você é familiar com o assunto, não é difícil se perder na montagem singular do filme: um ensaio poético que não está preocupado com a cronologia ou contextualização.
Mas se você levar em consideração o espírito contestador do Cinema Novo, que assumiu a questão do subdesenvolvimento do país ao se voltar para produções de baixo custo que retratavam a realidade brasileira – mesmo que isso acarretasse na repressão e censura pela ditadura militar. “Mesmo que a pessoa não conheça o movimento, ela se conecta com uma energia criativa, estética e política”, define o cineasta.
Mas para aqueles que querem uma experiência mais didática, o filme também vai se desdobrar numa série. Serão seis capítulos de 26 minutos e está prevista para estrear no final de dezembro, no Canal Brasil. “Se o documentário aposta na experiência, tem um caráter quase de uma instalação de arte, a série será cronológica e em um formato mais tradicional”, avisa o diretor.
O filme, que estreou nacionalmente no último dia 3, foi premiado com “Olho de Ouro” no Festival de Cannes deste ano, como melhor documentário. Eryk concedeu entrevista ao TELA BRASIL na véspera de sua viagem para Nova Iorque, aonde o longa de 90 minutos será exibido na a mostra “The Contenders”, organizada pelo MoMa. “O filme está abrindo um diálogo entre gerações, sobre um movimento quase esquecido. Até os jurados de Cannes admitiram que tinham pouca familiaridade com o Cinema Novo”, afirma.
Cinema Novo é um filme muito atual. As décadas passam e certos problemas do cinema brasileiro (e do Brasil) permanecem sem solução. Como um filme sobre os anos 1960 pode refletir o presente do país de forma tão contundente?
Apesar de nos debruçarmos sobre um período histórico, é um documentário que quer falar do agora e pensar no presente. Que não enxerga o Cinema Novo como coisa congelada. Ele é um filme feito em 2016, é bom lembrar. A gente trouxe o que há de mais pertinente do discurso dos autores hoje, seja na política, na questão social e no próprio cinema. O filme é permeado pelo movimento, pela corrida, pela marcha. É justamente isso, um olhar do Cinema Novo como uma metáfora do Brasil atual. Por que as questões abordadas naquele período permanecem vivas, como uma ferida aberta. São desafios para minha geração e a para a próxima. O Cinema Novo foi um movimento seminal para os anos 60, é o movimento mais importante da história do Brasil, talvez o mais importante do mundo. É um filme feito pra relembrar pra onde a gente veio. E, mais importante, mostrar pra onde a gente deve seguir.
Por que você evitou definir ou explicar o Cinema Novo? Você não acha que essa abordagem pode afastar quem não tem familiaridade com o movimento? Afinal o projeto de formação de público era uma das principais preocupações dos diretores da época.
Acho que não. Não é um filme sobre o Cinema Novo, é um filme com o Cinema Novo. Os diretores são os personagens, eles falam em primeira pessoa, sem intermediários. O filme eclode desses autores e pensadores, ele nasce de dentro dessa aventura. O filme é uma carta de amor a uma geração que deu a vida pelo cinema e pelo Brasil. É uma carta e uma canção de amor. Tem uma partitura. Por mais que você não conheça, essa música te conecta. É como dizia o Humberto Mauro: cinema é cachoeira.
Por que se voltar apenas ao material de arquivo para contar essa história? Os depoimentos dos cineastas ainda vivos dariam outra perspectiva sobre o legado do movimento?
Eu filmei cerca de 20 entrevistas dos cineastas vivos, e apenas os áudios dessas entrevistas foram usadas. A escolha de não usar imagem é pra romper uma mediação racional entre o passado e o presente. Esses senhores avaliando o legado Cinema Novo iriam criar uma racionalidade que não interessava no filme. A gente tinha uma multidão de materiais disponíveis. Só de filmes, tínhamos 130. Além de entrevistas para a televisão, filmes caseiros, making of e reportagens. Portanto, o corpo do filme é composto por muitos corpos. Ele incorpora essa matéria prima para criar um novo corpo que dialoga e transforma.