quinta-feira, 18 de agosto de 2016

De maneira realista, respeitosa e cativante, “Epidemia de cores” mostra o cotidiano de pacientes de hospital psiquiátrico gaúcho

Epidemia de Cores narra o dia-a-dia dos pacientes e coordenadores da Oficina de Criatividade ministrada pelo Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre. Previsto para ser lançado em setembro nas salas de cinema de São Paulo, Rio, Salvador e Brasília, é o primeiro documentário do realizador e antropólogo Mário Sérgio Sarrenta.

Após conhecer a Oficina de Criatividade, nos tempos de pós-graduação, Mário teve a ideia de fazer Epidemia em Cores. Sem experiência no audiovisual, ele inspirou-se também no Tela Brasil, um dos responsáveis por seu aprendizado na área. “Como não tenho formação na área cinematográfica, fui aprendendo durante o próprio processo, assistindo muitos tutoriais e realizando muita pesquisa sobre o assunto. No início, o próprio site do Tela Brasil contribuiu para eu compreender as diferentes etapas da produção de um filme”, conta.

Em mais de dois anos de filmagens, o diretor realizou a captação de imagens interagindo com os participantes para falar sobre arte, loucura e liberdade. “Realizado com participantes da Oficina de Criatividade, sejam eles moradores do hospital ou apenas interessados em arteterapia, o filme reproduz uma relação de afeto com vidas que pulsam em um hospital psiquiátrico que nasceu como um hospício”, explica o realizador.

A Oficina surgiu há 26 anos como reabilitação,simultaneamente à luta antimanicomial. Primeiro eram atendidos apenas pacientes asilares e, atualmente, público externo que faz tratamento no ambulatório do hospital ou na rede de serviço de saúde. Nos dias de hoje, as atividades contam com a participação de ex-internos, moradores do hospital psiquiátrico (pessoas internadas há décadas) e frequentadores interessados em arte, arteterapia ou no desenvolvimento de atividades expressivas diversas, tais como pintura, bordado, escultura em argila e escrita criativa. O Acervo da Oficina de Criatividade conta com cerca de 200 mil obras dos atendidos.

Confira abaixo o que Mário contou ao Tela Brasil sobre o processo de filmagem e descobertas.

Como surgiu a ideia  de fazer o documentário?

No início, a intenção era fazer um vídeo de poucos minutos para mostrar a importância da Oficina de Criatividade para uma moradora específica do hospital psiquiátrico. Comecei a filmar outros participantes e senti a responsabilidade de fazer reverberar alguns depoimentos. O ambiente também me parecia muito atraente para a produção audiovisual por sua estética impactante, já que se trata de um hospital psiquiátrico centenário que surgiu na forma de hospício.

Como foi o processo de produção?

Como não tenho formação na área cinematográfica, aprendi durante o próprio processo. Assisti a muitos tutoriais e realizei muita pesquisa sobre o assunto. No início, o próprio site do Tela Brasil contribuiu para eu compreender as diferentes etapas da produção de um filme. Comprei gradualmente alguns materiais, obtive cartas de apoio e as autorizações necessárias para a execução do documentário e então submeti o projeto a um edital de arte, demonstrando estar em um estágio bastante avançado. O projeto foi contemplado com recursos financeiros para realizar as últimas filmagens e a pós-produção do filme.

Quantas pessoas integraram a equipe do documentário e por quantos dias vocês filmaram?

Filmei todo o documentário sozinho, em um processo que durou mais de dois anos. Muitas vezes eu levava os materiais e filmava nada, respeitando as interações dos participantes. Tive que desenvolver técnicas para fazer a captação do áudio simultaneamente com a gravação do vídeo, o que impôs algumas limitações. No making of eu mostro alguns materiais, como um sholder e um travelling produzidos com canos de PVC e uma mesa de passar roupa adaptada. Para as últimas filmagens, tive a possibilidade de ter mais profissionais, mas decidi manter a proposta de realizar todas as captações sozinho, o que também é parte da constituição de uma relação ética com os pacientes de não ter horários específicos agendados, como provavelmente seria demandado no caso de uma equipe maior.

Quais foram os maiores desafios desse projeto?

O principal foi a constante preocupação ética. Minha proposta é que esse documentário oportunize uma relação de afeto, uma experiência, mais do uma reportagem jornalística. Também tive que garantir minha autonomia para que a instituição não interviesse na concepção do filme, pois eu não faria um filme institucional..

Houve algum fato inusitado com os pacientes?

Um dos participantes pediu para eu filmá-lo e, depois, me questionou se eu sabia o que era preconceito. Cogitei que ele estaria sugerindo que eu havia sido preconceituoso e decidi apagar todas as gravações daquele dia nas quais ele aparecia. Depois disso. ele me pediu uma fotografia. Só então entendi que o que ele queria era saber o significado da palavra, pois uma pessoa havia dito ter sofrido preconceito e ele não sabia o que significava. Outra situação importante para a forma que o filme tomou foi o fato de um participante ter me perguntado se “as pessoas da rua” iriam poder assistir às gravações. Ele esteve internado por uns 12 anos e, na época das filmagens, frequentava o local apenas para pintar. Ele contou histórias sobre seu internamento e o uso de eletrochoque. Isso me impôs uma responsabilidade ainda maior sobre a divulgação desse material.

Os pacientes lidaram bem com a presença da equipe e de câmeras de vídeo?

Sim, pois a maior parte deles já me conhecia em função das pesquisas acadêmicas que eu havia realizado. Tínhamos uma proximidade afetiva que foi essencial para a garantia de uma filmagem que pretendeu ser respeitosa. A maior parte deles gosta de fotografias e se sente muito à vontade interagindo nas filmagens. Alguns poucos não gostam e isso foi respeitado, de modo que não foram filmados.

O que mais te surpreendeu?

A reação positiva que tive por parte deles. Embora todos tenham assistido aos trechos editados e aprovado, tinha receio de que, devido ao tempo da etapa de pós-produção, alguns pudessem mudar de opinião quando o filme estivesse pronto. Conseguimos levá-los à um cinema para assistir ao filme e também realizamos uma projeção no próprio hospital psiquiátrico. Percebi que o vínculo afetivo de alguns deles comigo aumentou depois de assistirem ao filme.

Qual dica que você pode dar para os realizadores em início de carreira no audiovisual?

Pesquisem bastante, leiam entrevistas com diferentes profissionais do cinema e estejam atentos a soluções alternativas de produção e distribuição. Embora eu não tenha tido experiência de participar de laboratórios de cinema para o desenvolvimento do argumento ou discussão de roteiro, creio que esta é uma ótima oportunidade para a qualificação do resultado final.

Nenhum comentário: