segunda-feira, 20 de julho de 2015

“Campo de Jogo”, novo filme de Eryk Rocha, faz uma ode visual e social ao futebol



Uma disputa futebolística entre favelas em um bairro próximo ao Maracanã é a um só tempo ponto de partida, mote e cenário para o aguardado novo filme do cineasta Eryk Rocha, Campo de Jogo (clique aqui para assistir ao trailer). Exibido no Festival do Rio e selecionado para importantes festivais internacionais como os de Londres (BFI London Film Festival) e Copenhagen (CPH Dox), o longa estreia em São Paulo e no Rio de Janeiro no dia 23 de julho. Filho de Glauber Rocha e conhecido pelos filmes Transeunte (2010) e Jards (2012), Eryk tem uma obra consolidada com produções de temáticas diversas (leia o perfil do cineasta que publicamos aqui no Portal ), mas, segundo ele, até agora não tinha ainda conseguido unir duas grandes paixões, o futebol e o cinema.

Apesar de se tratar de um documentário, a estética foge do tradicional formato de entrevistas documentais e alcança uma exatidão realista que paradoxalmente faz lembrar um filme de ficção. Os personagens se comportam com naturalidade, e as imagens impressionam pela fotografia e edição impecáveis. O competidíssimo “Campeonato anual de favelas” de Sampaio, bairro vizinho ao estádio-sede da final do maior evento de futebol do mundo, parece dizer ao espectador: não somos o Maracanã, mas o que fazemos é importante.
Cada jogador, torcedor e entusiasta ali envolvido parece fazer parte de um processo ritualístico de mostrar ao mundo o potencial de força de uma comunidade. Carregado em dramaticidade e imagens de intenso rigor estético, o filme lança luz a um espetáculo invisível que acontece à margem da sociedade que os desconhece.

O filme começa com a final do campeonato, disputado pelos times Geração e Juventude. Em um dado momento, os torcedores de um dos lados começam a provocar o time rival entoando um famoso samba de Beth Carvalho: “choooora, não vou ligar, chegou a hora! (…) vou festejar o teu sofrer, o teu penar”. Em seguida, uma ópera toma conta da trilha e dá uma guinada na percepção de quem assiste: o filme passa da descontração lúdica para a seriedade dramática em poucos segundos. Esse é o tom que permeia todo o filme, uma intenção de levar à tela o potencial épico do futebol, de engrandecer um espetáculo que não se deixa transformar em um show às avessas por falta de plateia que o legitime.
“O campo de jogo é um momento de integração da comunidade e ao mesmo tempo de invenção coletiva. Os campos de pelada são o último e real patrimônio do povo”, afirma o diretor, Eryk Rocha. Conversamos com ele para saber mais sobre o filme.
Confira abaixo.

Gostaria que falasse sobre sua relação com a comunidade de Sampaio antes e depois do filme. Como vocês se conheceram e como percebeu o potencial para um filme?

Futebol é uma paixão da minha vida, jogo e frequento estádio desde criança. Campo de Jogo é um filme que fala das minhas memórias e junta duas paixões: futebol e cinema. Eu sempre quis falar sobre esse futebol de periferia que faz um contraponto ao futebol padrão Fifa. Num primeiro momento, a ideia era falar sobre vários espaços, várias locações, mas quando descobri o campo de Sampaio ele era um síntese de todos os campos que eu tinha visto. E aí conhecendo as pessoas do lugar a coisa foi se confirmando. Fomos construindo aos poucos uma relação permanente com as pessoas e com o lugar. Campo de Jogo nasce de um encontro – meu e da minha equipe – com o filme. Chegar naquele campo e descobrir aquele campeonato foi uma descoberta pra nós. O que mais me fascinou foi o ritual, o campo como palco para um processo dionisíaco. Na verdade, o próprio jogo já traz essa narrativa, o futebol é uma espécie de dança, e o filme nasce desse amálgama.

Campo de Jogo se distancia da estética convencional dos documentários tradicionais. A impressão que dá é de estarmos diante de um filme de ficção, como se os personagens tivessem consciência que estão dentro de um filme, ao mesmo tempo em que o comportamento deles é muito natural. Como foi isso?

Nós desenvolvemos um grau de confiança com as pessoas, de cumplicidade mesmo com os participantes do campeonato e os moradores das comunidades do entorno. Foram seis meses de contato e gravação, e foi tudo muito intenso, porque estabelecemos uma amizade muito grande com as pessoas.

Os personagens se envolvem muito no jogo, se engajam naquilo como se fosse a coisa mais importante da vida deles. É como se o futebol fosse o grande papel de suas vidas e tivesse uma “função social”. O que acha sobre isso?

Concordo. Essa região, na zona norte do Rio de Janeiro, como muitas no Brasil, apenas reflete uma realidade maior; é uma região de comunidades muito pobres tomadas por igrejas e pelo narcotráfico. Não tem um cinema, um teatro, uma biblioteca. Então, o campo representa tudo para eles, é um ponto de encontro da comunidade, o único lugar de protagonismo, onde eles podem liberar a energia criativa que têm dentro de si. O campo de jogo é um momento de integração da comunidade e ao mesmo tempo de invenção. E muitos campos como esse estão sendo extintos por conta da especulação imobiliária, invasão de shoppings, igrejas. Os campos de pelada são o último e real patrimônio do povo. Me arrisco a dizer que é o espaço mais democrático de invenção coletiva e popular.

Gostasse que falasse um pouco sobre a trilha sonora, que traz Villa-Lobos, óperas de Wagner. Por que essa escolha?

O filme tem dois pólos musicais, a percussão africana que é muito forte como um desenho sonoro e a música erudita. Achei interessante a referência negra com música clássica europeia. Na cena do juiz, por exemplo, ele representa o poder, um branquinho franzino que destoa dos jogadores. Ali ele representa o Estado, aquele que manda. Então, cenicamente, a ópera trouxe para a cena essa dramaticidade, até por ser uma coisa europeia. Afinal, os ingleses descobriram o futebol como técnica, mas o brasileiro descobriu o futebol como arte graças à presença do negro. O campo de jogo não é só um jogo de domingo, cotidiano, mas um campo de batalha, de luta diária da periferia do país. Isso é importante para o filme, mostrar esse transe que acontece ali e que transcende para o épico.

A projeção de gala de “Campo de jogo” no Cinépolis Lagoon (RJ) contou com a presença deor dezenas de representantes das comunidades, que chegaram ao complexo de salas da Lagoa em um ônibus fretado pela produção do filme. Que importância teve para eles essa representação na tela? Que tipo de feedback você recebeu deles?

Foi incrível. Para muitos deles, aquela era a primeira vez no cinema. Eram três salas e eles estavam ocupando metade delas. Foi uma catarse! A tela ali era como um espelho, eles interagiam com as cenas, riam, se divertiam. Vamos fazer a primeira pré-estreia lá. A ideia é colocar um telão no campo onde filmamos pra todo mundo descer da comunidade para assistir. O desejo do filme é que o campo de jogo seja a própria tela do cinema.

Como foi a recepção fora do Brasil? Você percebe algum tipo de “exotização” da pobreza na reação desse público?

Acredito mais no cinema da desfronteira. Algumas pessoas nos EUA e Europa me perguntaram se o campeonato existia mesmo ou se era ficção. É tudo real, eu não inventei nada, mas a câmera encena também, não deixa de ser uma reinvenção poética a partir da realidade.

Você pretende que Campo de Jogo seja um filme popular e/ou social?

É um filme político, de resistência. Ele faz um contraponto ao apresentar o futebol brasileiro de raiz, de reinvenção da juventude popular das favelas. O futebol como produto se inspirou em tudo isso: no negro, no moleque, na ginga. O futebol brasileiro foi criado nesse caldeirão todo e o Sampaio representa isso. Esse próprio campo foi ameaçado de ser extinto, existe um conflito na comunidade em relação a isso. Quero que meu filme provoque e que isso seja discutido: esporte não é só esporte, é uma manifestação cultural. Até por isso acho muito oportuno o filme estrear nesse momento que estamos vivendo, com a cabeça dos imperadores virando bola, rs. Não é um filme só para quem gosta de futebol ou só para quem gosta de cinema. Ele se comunica abertamente e com um público muito heterogêneo. Tem muitas mulheres que odeiam futebol e que adoraram o filme, ou pessoas que não têm nenhuma relação com o futebol e que se envolveram muito. Eu me atreveria a dizer que é um filme com um poder de comunicação muito grande.


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