Sniper Americano é um filme perigoso por causa da indefinição narrativa que se vê pela maior parte da sua duração. O diretor Clint Eastwood e o roteirista Jason Hall não se decidem se querem fazer um drama sobre o efeito psicológico que a guerra exerce sobre os homens que lutam, ou se querem fazer um filme de ação e suspense com um herói e um vilão, e no qual torcemos por um soldado determinado a matar o maior numero possível de inimigos dos Estados Unidos.
Esse soldado é Chris Kyle, vivido no filme pelo ator Bradley Cooper. Kyle é americano até a medula: nas cenas que o apresentam, ele é visto ainda criança aprendendo a caçar com o pai, depois o vemos na igreja e, numa cena doméstica, ele aprende uma lição valiosa do pai – “há três tipos de pessoas: cordeiros, lobos e cães pastores”. Depois, já adulto, vira cowboy. Meio sem rumo, decide alistar nos fuzileiros. Seu sonho é tornar-se um dos SEALs, a elite militar americana, e acabar com os inimigos do seu país. Depois ele se casa com Taya (Sienna Miller), o 11 de setembro de 2001 acontece e ele é mandado para o Iraque.
Kyle realmente existiu e se tornou uma lenda das forças armadas americanas. Estima-se que na função de sniper, atirador de elite, ele tenha matado cerca de 160 pessoas durante quatro turnos de serviço no Iraque, mais do que qualquer outro atirador na história. Kyle é mostrado no filme como alguém disposto a tudo para proteger os Estados Unidos dos seus inimigos e que considera fracos os seus companheiros de serviço que desenvolvem “traumas”. Não há nuances: o homem gostava do que fazia e o próprio filme faz questão de reforçar isso – afinal, o protagonista chama os iraquianos de “selvagens” diversas vezes, e é o herói do filme!
Há, no meio da história, uma tentativa de introduzir um pouco de drama e tons mais cinzentos ao personagem de Kyle. É quando Bradley Cooper, na sua atuação visivelmente dedicada, brilha mais. Porém, para cada cena em que vemos Kyle se questionando, ou na qual a sua esposa diz a ele sobre como a guerra o está modificando, há várias outras que são empolgantes, como a batalha para procurar o vilão conhecido como “Açougueiro”. Na história existe também outro vilão, o atirador sírio apelidado de “Mustafá”, um concorrente à altura de Kyle. Obviamente, esse vilão se veste de preto e cada uma das suas aparições é acompanhada de um acorde sinistro na trilha sonora.
Essas cenas empolgantes, com suspense e ação, são realizadas com todo o apuro técnico que o dinheiro de Hollywood pode comprar – o design de som do filme é excepcional, por exemplo. Porém, todas as qualidades técnicas estão a serviço de uma peça de propaganda, um filme de recrutamento no qual o “herói”, acreditando na própria lenda que já começava a se espalhar entre os soldados, abandona seu posto de atirador e começa a liderar operações, e depois, por um ato de vingança, desencadeia a batalha final que poderia levar muitos dos seus companheiros à morte. O Chris Kyle do filme é sempre forte, e Cooper ficou enorme para o papel. Quando muitos ao seu redor começam a morrer e outros, a se questionar, ele está sempre lá, como um centro poderoso e gigante, alguém para quem não há dúvidas.
Ou seja, não é mais um personagem crível, é o Rambo de volta, ganhando na ficção a questionável e complicada guerra do mundo real. Não à toa, o longa foi um sucesso nos Estados Unidos, o primeiro real campeão de bilheteria envolvendo o espinhoso tema da guerra do Iraque. As cenas que sugerem um Kyle modificado pela experiência são uma tentativa do filme de “fazer o bolo e comê-lo também”. Não se pode ter ao mesmo tempo os horrores da guerra e um filme de ação no estilo de Chuck Norris – a barba de Cooper evoca lembranças do velho astro da ação e de alguns dos seus filmes patrioteiros. Além disso, o “trauma” de Kyle dura pouco, e logo depois ele volta a ser um homem de família disposto a ajudar seus companheiros de serviço.
Sniper Americano deixa clara a postura conservadora de Eastwood e Hall até o seu desfecho, quando (NÃO LEIA O RESTO DO PARÁGAFO SE NÃO TIVER VISTO O FILME, POSSIVEL SPOILER A SEGUIR)……. o diretor se nega a mostrar a morte de Chris Kyle, que foi assassinado em 2013, já nos Estados Unidos, por um veterano a quem tentava ajudar. Ao fazer isso, o diretor e o roteirista se acovardam e perdem de vista a tragédia da vida e da morte do seu protagonista: um homem que se tornou definido pelo ato de matar acabou morto pela própria violência da guerra, por um dos seus companheiros “fracos” para quem a guerra foi uma experiência trágica demais. Kyle matava suas vitimas à distância, de forma fria, mas a violência que veio a acabar com sua vida estava bem próxima a ele.
Sendo assim, são constrangedoras as cenas finais, imagens de arquivo que retratam a admiração ao herói Chris Kyle. Muita gente acredita que vale a pena matar e morrer por “Deus, o país e a família”, como Kyle diz numa cena. Porém os realizadores de Sniper Americano não percebem que é precisamente desse raciocínio que nascem o extremismo e a guerra, e ao louvá-lo, criam uma obra perigosa e questionável. Na guerra não existem heróis, e é uma pena que o cineasta que fez um filme inteiro dedicado a essa ideia – A Conquista da Honra (2006) – sucumba de forma tão rasteira à patriotada e aos maniqueísmos. Histórias de heróis de guerra só servem para atrair mais candidatos a lendas, e nesse sentido, Sniper Americano deverá se tornar, com o tempo, uma das peças de recrutamento mais eficientes da história do cinema americano.
Nota do CD:
2 out of 5 starsNota dos Leitores:
Ficha Técnica:
Gênero: DramaDireção: Clint EastwoodRoteiro: Jason Dean HallElenco: Amie Farrell, Anthony Jennings, Assaf Cohen, Ben Reed, Billy Miller, Bradley Cooper, Brando Eaton, Brett Edwards, Brian Hallisay, Chance Kelly, Cory Hardrict, Darius Cottrell, Emerson Brooks, Eric Close, Eric Ladin, Erik Aude, Evan Gamble, Greg Duke, Jake McDorman, James Ryen, Jet Jurgensmeyer, Joel Lambert, Jonathan Kowalsky, Keir O’Donnell, Kyle Gallner, Leonard Roberts, Luke Grimes, Marnette Patterson, Max Charles, Mido Hamada, Navid Negahban, Owain Yeoman, Reynaldo Gallegos, Robert Clotworthy, Sam Jaeger, Sammy Sheik.
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