No filme polonês Ida, Anna é uma noviça vivendo num convento católico. Nas cenas iniciais a vemos realizando algumas atividades: reunindo-se com outras freiras ao redor de uma estátua de Cristo, num jantar no qual o ruído quase ritmado dos talheres batendo contra os pratos é o único som a romper o silêncio… A época é indeterminada e por um momento parecemos estar vendo uma história ambientada há vários séculos atrás. Afinal, as imagens são em preto-e-branco e enquadradas no formato de tela mais antigo do cinema, o 4:3 quadrado.
Um dia, a vida de Anna sofre uma pequena reviravolta: ela, que sempre se acreditou órfã, é informada pela sua madre superiora de que tem uma tia, sua única parente viva. Antes de ser ordenada definitivamente, ela é instruída a ir passar um tempo com esta tia e ver um pouco do mundo. Sem dizer quase nada, ela aceita.
Sua tia se chama Wanda e mora na cidade – então descobrimos que estamos no século XX, na Polônia dos anos 1960. Wanda é juíza e tem mais revelações para Anna: a moça na verdade é judia, se chama Ida, e seus pais foram mortos pelos nazistas durante a ocupação polonesa na Segunda Guerra Mundial. Os corpos deles nunca foram encontrados, e Anna/Ida pede a Wanda que ambas saiam à procura deles. Apesar da tia não gostar da ideia inicialmente, ela acaba concordando.
Com esse enredo, o cineasta Pawel Pawlikowski cria um filme que tem elementos de road-movie e não deixa de ser um estudo de personagem, mas descrever Ida nestes termos simplesmente não lhe faz justiça. A austeridade do filme, concretizada pela fotografia em preto-e-branco, pela absoluta concisão narrativa – o filme dura apenas 81 minutos e descarta qualquer enfeite ou momento desnecessário – e pela própria interpretação da atriz principal, tornam Ida um filme que é mais do que a soma das suas partes.
O rigor de Pawlikowski na condução da história é absoluto. Por praticamente todo o filme, ele mantém seus personagens – Ida, especialmente – na parte de baixo dos seus enquadramentos, deixando amplos espaços vazios acima dos seus atores. É como se os personagens, e seus rostos, fossem pequenos em relação aos ambientes e às circunstâncias que os rodeiam. Apenas em alguns momentos eles se mostram maiores, e o diretor tira máximo proveito disso quando vemos, numa cena, um close de Ida que abrange praticamente todo o enquadramento. Este é o momento no qual ela finalmente cresceu.
A história do filme reflete o crescimento dela, e por isso a atuação da protagonista encontra eco no cinema do francês Robert Bresson. Há uma influência de Bresson em Ida, e Pawlikowski, ao escolher para protagonizar o filme a jovem Agata Trzebuchowska, acabou criando algo parecido com que o mestre francês costumava fazer. Trzebuchowska era uma estudante sem experiência como atriz, mas sua presença em frente à câmera acaba provocando o interesse do espectador. Bresson costumava a se referir a alguns dos seus atores como “veículos”, e esse termo se aplica perfeitamente à presença de Trzebuchowska em Ida. Com seus olhos escuros e rosto expressivo, ela acaba fazendo com que o espectador projete nela seus próprios sentimentos. Nunca sabemos realmente o que ela está pensando, apenas imaginamos, e continuamos imaginando o que se passa em seu interior até os momentos finais do filme.
Por isso, a atuação de Agata Kulesza como Wanda é o perfeito contraponto à de Trzebuchowska. Enquanto Ida é inocente, Wanda é amargurada e alcóolatra. Ao longo do tempo, a busca das duas mulheres pelos restos dos pais de Ida aprofunda a amargura e a frieza de Wanda, enquanto Ida permanece um enigma – não sabemos se a busca a entristece ou mesmo se representa algo muito importante para ela. Além disso, enquanto a noviça nada conhece do mundo, a mulher mais velha tem muita experiência com ele – Pawlikowski nos mostra uma cena dela trabalhando como oficial de justiça, servindo ao Estado comunista. Kulesza tem uma atuação forte, sempre deixando clara a hostilidade latente dentro da sua personagem. Ao contrário da protagonista, sua tia é uma mulher direta e sempre sabemos o que ela está pensando.
Esse contraste é necessário para a história, pois o filme é sobre a escolha final de Ida: no fim da sua busca, em qual mundo ela vai decidir viver, afinal? A procura das duas mulheres acaba fazendo com que um doloroso passado seja remexido, causando mais mal do que bem, e também faz com que a jovem acabe tendo algumas experiências novas em sua vida. Ambos os mundos, o do convento e aquele onde as demais pessoas vivem, são cinzentos e austeros. Num deles há muita confusão, no outro as coisas são mais ordenadas. Ao final ela decide, e sua decisão é mostrada de forma visual e com o mínimo de diálogos – aliás, este é um filme no qual se fala pouco. A maior proeza do filme é a de tornar compreensível aquilo que pertence ao mundo interior de uma pessoa. Todo o processo narrativo está na tela, nos olhos e no rosto da jovem atriz que interpreta Ida. Ela nos hipnotiza e nos mostra o amadurecimento de alguém que no inicio do filme descobriu quem era, e ao final decidiu quem iria ser dali para a frente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário