A política de formação incentivada de mercado é benéfica ao assegurar uma receita para um segmento que depende de recursos para viabilizar projetos caros e de retorno incerto. Isso não significa que o programa seja perfeito
Vale-Cultura, medida benéfica por incentivar o mercado
(Crédito: Ministério da Cultura)
Olá. É longo, mas vale ler.
O Vale-Cultura foi uma das medidas mais comemoradas pela indústria cultural e pela classe artística em 2013, apesar de críticas quanto ao subsídio que o governo federal dará a quem aderir à iniciativa. Analisa, sem viés político, porque o Vale-Cultura é relevante para a indústria cultural de tal modo a ser celebrada como uma medida acertada, a ponto de deslanchar um segmento considerado de baixa dinâmica.
Não significa que o programa seja perfeito. Pelo contrário, ainda depende de alguns ajustes e da própria aceitação pelo mercado de trabalho, principalmente de que o vale é um benefício ao colaborador da empresa, complementar ao salário, como um vale-refeição ou um plano de saúde.
Recentemente, o governo federal divulgou que o Vale-Cultura já foi distribuído a quase 340 mil pessoas, o que corresponde a um volume de R$ 47,7 milhões utilizados na aquisição de produtos culturais desde janeiro do ano passado.
O que se pode afirmar é que a política de formação incentivada de mercado é benéfica ao assegurar uma receita para um segmento que depende de recursos para viabilizar projetos caros e de retorno incerto.
Em outras palavras: estamos falando de dinheiro líquido e certo.
- O Vale-Cultura beneficia quem ganha até cinco salários-mínimos, a faixa de renda que menos acesso têm a produtos culturais.
Qualquer pesquisa de mercado vai atestar esta afirmação: produtos culturais como CDs, DVDs, livros, cinema e teatro têm mais demanda quando a renda cresce. Ganha-se mais, sobra mais dinheiro. Mais dinheiro na mão abre espaço para a compra do que é considerado "menos necessário". Cultura é uma necessidade básica, mas a aquisição de um livro ou um CD, por exemplo, depende do dinheiro que sobra em mãos após comprar comida ou pagar a conta de luz.
O Vale-Cultura foca quem ganha até 3.940 reais (cinco salários mínimos; em 2015, de R$ 788), alcançando a pelo menos 40 milhões de trabalhadores que receberão um cartão com R$ 50 reais creditados mensalmente pelos empregadores. Essas pessoas poderão usar o dinheiro em, por exemplo, em peças de teatro ou cinema a preços populares, a aquisição de CDs e DVDs ou a ingressos para exposições, sem se preocupar com o dinheiro do dia a dia, já que o valor já está assegurado no cartão.
- O Vale-Cultura ajudará a criar uma fonte natural de financiamento para produtos culturais.
Como o cartão concede 50 reais mensais a cada pessoa que recebe, o potencial é de uma receita de 2 bilhões de reais por mês para a cultura - ou 24 bilhões de reais por ano. Além disso, o governo pode optar pela extensão da faixa para, por exemplo, sete ou oito salários mínimos, o que eleva ainda mais o potencial de atendidos, e consequentemente de receita gerada com o benefício.
O que o governo cria, com o Vale, é a demanda, a ponta onde os produtos devem chegar. Ao assegurar uma demanda, que é carente de educação de qualidade e cultura acessível, o governo estabelece um ritmo de mercado que levará produtores e empresas artísticas a oferecerem produtos que custem pouco, a ponto de serem consumidos pelos beneficiários do vale. Ou seja, forma escala.
- O Vale-Cultura tira um pouco o peso dos incentivos fiscais como fonte de financiamento. E isso é bom.
A consequência mais natural. Com mais dinheiro direto na fonte, os produtores começarão a depender menos dos incentivos fiscais para as criações. O motivo é a geração de caixa que pode resultar na decisão de autofinanciamento dos futuros projetos, sem recorrer a bancos ou outras fontes de crédito.
Ainda não há um mecanismo que ajude a prever a demanda por determinados produtos culturais - e se efetivamente terão demanda - mas a formação de um histórico de consumo poderá ajudar na formatação dos futuros projetos e na avaliação dos próximos passos. Tropa de Elite 2 só saiu do papel porque o Tropa 1 teve mais de 6 milhões de expectadores.
Suponhamos, como exercício simples, que uma produtora de peças teatrais perceba que vende em média 20% mais ingressos com o Vale-Cultura em todas as suas produções, após um período de vigência da iniciativa. Isso significa que esse dado vai significar uma receita adicional que levará o produtor a reduzir o valor da captação.
E dependendo do caso, a formação de caixa pode ser tamanha a ponto de levar produtores a desistir de buscar incentivos para futuros projetos. Pois se eu tenho dinheiro na mão, um bom produto e consumidores que querem pagar por esse bom produto, não terei a necessidade de captar recursos, algo que demora tempo e traz uma incerteza para os produtores.
- O Vale-Cultura vai forçar o surgimento de produtos culturais de qualidade
O Vale-Cultura poderá ser usado para compra de DVDs, CDs, peças de artes plásticas e artesanato, instrumentos musicais, livros, revistas e jornais; pagamento de ingressos para cinema, espetáculos musicais, de teatro, dança, circo, exposições e festas populares; e pagamento de mensalidades em cursos de artes, fotografia, literatura, música e outras áreas culturais.
Dado esse amplo espectro, o beneficiário vai optar, naturalmente, pelo que mais lhe agradar. Um livro ou revista pode ser preterido ante um show de uma atração popular, por exemplo. Nesse ponto, gostos e identificação serão dois pontos contra os quais os produtores não terão como lutar. De qualquer modo, criadores de projetos culturais terão que fazer o melhor para oferecer boas opções a baixo preço - a tendência é que um beneficiário tenda a adquirir 5 produtos de 10 reais a um de 40 por exemplo.
Naturalmente, isso é uma especulação que eu faço, mas a lógica econômica força a essa conclusão... Por isso, a tática-chave será formação de escala, criando produtos que possam chegar a um número maior de pessoas, por um preço mais baixo.
Vender ingresso de cinema a 5 reais para 200 pessoas é mais fácil do que vender ingresso a 50 reais para 20 pessoas - no fim você arrecada 1 mil reais da mesma forma. Mas quantas pessoas estão dispostas a pagar 50 reais num ingresso? Pergunte-se se pagaria esse preço por um filme.
- Empresas investidoras em cultura poderão reforçar sua presença no setor cultural com o Vale-Cultura
Sim, e por dois caminhos. Um deles é o de conceder o Vale-Cultura a seus funcionários, incentivando-os a procurar por projetos patrocinados pela própria empregadora. Vou dar um exemplo fictício. Vamos fazer de conta que uma empresa de energia, presente em pelo menos cinco estados do país, resolveu patrocinar um filme nacional. Ao conceder o Vale-Cultura, essa empresa pode indicar o filme em redes de cinema onde seus funcionários, ao se identificarem na bilheteria, podem receber descontos sobre os ingressos.
Outro caminho é o de patrocinar eventos ou produtos com amplo potencial de consumo pelos beneficiários. Sim, porque ao verem a marca da empresa onde trabalham em projetos culturais, pode haver uma identificação de tal maneira que os funcionários acabam atuando como agentes de divulgação do programa - ainda mais se eles forem contemplados pelo Vale-Cultura.
Além disso, como o potencial de pessoas atendidas é elevado, algo em torno de 40 milhões de pessoas, expor a marca para um público como esse certamente será algo que não se despreza. Com isso, empresas tendem a abrir mais o caixa para iniciativas culturais - sendo, na prática, mais uma alternativa aos incentivos fiscais como forma de financiamento.
Cabe ressaltar que a adesão ao Vale-Cultura não é obrigatória e as empresas que assim o fizerem recebem desoneração fiscal - OK, há ação direta do governo aí, mas espera-se que a desoneração seja suprida com a elevação das vendas de produtos culturais.
- O Vale Cultura vai ajudar na formação de infraestrutura cultural.
Reportagem publicada pelo jornal O Globo no dia 29 de dezembro de 2013 mostrou que há uma espécie de 'apartheid cultural' no país. Enquanto regiões mais ricas possuem oferta ampla de equipamentos culturais, estados menos favorecidos possuem baixa (ou nula) oferta.
A matéria ressalta que São Paulo tem 869 salas de cinema, enquanto o Acre (o pior estado nesse setor) tem apenas quatro, todas na capital, Rio Branco. Ao mesmo tempo, São Paulo possui 559 museus e 306 salas de teatro, enquanto Roraima tem cinco museus e Tocantins tem apenas três salas de teatro. Roraima tem ainda duas livrarias, contra 821 em São Paulo.
Na avaliação da então ministra da Cultura, Marta Suplicy, para a reportagem, o quadro atual será um estímulo para a formação de novos equipamentos, uma vez que "onde existe consumidor, geralmente o mercado se organiza".
É natural. A formação da demanda vai obrigar à formação da oferta. Numa economia organizada, por mais nobre que seja o assunto cultura, investidor quer lucro - é de onde a empresa, os donos e seus funcionários se sustentam. Se um estado possui baixa procura por livros, não haverá quem queira instalar uma livraria neste local. Mas se há dinheiro circulando e pessoas a procura de livros, a oportunidade surgirá para quem apostar num estabelecimento nesta região.
- CDs, DVDs, livros, revistas e (talvez) cinema devem ser os mais procurados pelos beneficiários
Isso é um palpite puramente empírico. Chute. Mas apoio essa avaliação numa premissa: é mais fácil gastar no que é acessível. Pode-se comprar livros, revistas, CDs e DVDs até em bancas de jornal. São itens que estão à mão dos que receberão o Vale. Ao contrário, por exemplo, de um show que está programado para uns 50 quilômetros de distância da casa de uma pessoa.
Além do deslocamento (Carro? Ônibus? Trem?) há ainda a questão da segurança - o local é deserto à noite? É arriscado voltar para casa? Tem transporte? Policiamento? Tenho que andar três quarteirões até chegar no ponto de ônibus?
Há ainda os gastos associados (souvenirs, comer, beber...) que esses eventos sempre apresentam. Esse gastos não são cobertos pelo Vale e dependem das pessoas terem dinheiro disponível e estarem dispostas a gastar com esses itens.
Além disso, existe uma coisa chamada percepção de valor. Isso é algo que se desenvolve numa comunidade, numa família, num grupo social. Leva tempo e dinheiro. Mas a percepção de que determinado produto é valioso demais para não se adquirir, quando acontece, se traduz em resultados interessantes.
Há ainda as motivações pessoais, como no caso do cinema, e dependendo do filme em questão. O beneficiário pode entender que não pode deixar de ver o filme no cinema, não quer esperar passar na TV, a idolatria a determinados nomes, a história do filme é boa ou retrata uma época marcante… Há produtos culturais que conseguem despertar essas motivações com mais facilidade do que outras. Uma mostra de fotografia sobre a ditadura pode atrair muito mais gente do que sobre flores exóticas de países asiáticos - não que flores exóticas sejam um tema chato, longe disso.
Livro: um dos produtos que podem ser comprados como Vale-Cultura (reprodução internet)
- Por fim, o Vale-Cultura pode ser um primeiro passo para a formação de hábito cultural do brasileiro
Muita gente nunca leu um livro ou foi a uma peça de teatro, e não foi apenas por falta de dinheiro. Considerando o público-alvo de cinco salários mínimos, podemos incluir aí jovens que estão no primeiro emprego - e que não são necessariamente de baixa renda - que não tiveram hábitos de consumo de produtos culturais.
Ao ter dinheiro específico para a cultura, a condição pode despertar a curiosidade de quem recebe o benefício e não tem hábito de ler, ir ao cinema ou ao teatro, por pura falta de estímulos.
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