segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O fantástico legado da saudosa revista "Cinemin"


Já escrevi muito sobre a importância das revistas de cinema em minha infância, eu literalmente adorava ficar como uma ilha, sentado no chão, rodeado por todas as "Cinemin", "SET" e "Vídeo News" que faziam parte da coleção do meu pai. Eu viajava naquelas páginas, relia os textos até quase memorizar os parágrafos. Era uma época sem internet, aquele era meu único portal para o universo fascinante do cinema, a grande paixão da minha vida. A saudosa "Cinemin" foi pioneira, o melhor conteúdo já escrito sobre o tema no Brasil até hoje. A revista abordava todos os gêneros e épocas, com o mesmo cuidado e dedicação, com coberturas impressionantemente detalhadas de cerimônias de premiação e festivais, dos mais badalados aos menos conhecidos. Eu ouso dizer que foi a melhor publicação sobre cinema no mundo!

Tenho o orgulho de ter conquistado a amizade e o respeito profissional de alguns críticos que escreveram na revista. E, nessa postagem especial de final de ano, contei com a ajuda de dois deles: Saulo Adami e Sylvio Gonçalves. Eles relembram com muito carinho essa época mágica.


Entrevista com Saulo Adami:

Saulo Adami em ação na "Cinemin".
O - Ao folhear as revistas "Cinemin" das décadas de 1980 e 1990, fico impressionado com a qualidade editorial, a riqueza dos textos, as coberturas de pequenos e grandes festivais, o respeito extremo com os diversos gêneros e, o mais importante, o carinho com a memória cultural, algo que as poucas publicações atuais no tema não consideram interessante mercadologicamente. Triste isso, não? O passado, os grandes nomes que forjaram a indústria, não são valorizados pelos leitores. Como você enxerga essa questão? Como o povo brasileiro involuiu tanto e em tão pouco tempo?

S - Quando comecei a colaborar com a revista “Cinemin” no início da década de 1990, já participava de fãzines brasileiros desde meados da década anterior, contribuindo com artigos breves sobre cinema. Principalmente abordando minha temática favorita, “O Planeta dos Macacos”. A mesma paixão que encontrava estampada nos artigos escritos por meus parceiros de publicação nos fãzines, encontrava nas páginas de “Cinemin”. A produção da revista era profissional, responsabilidade da Editora Brasil-América (EBAL), que tanta falta nos faz hoje.

Quanto a mim, redator e editor de fãzines, a salvação era a máquina de fazer fotocópias, instalada em uma repartição pública de Brusque. O funcionário da repartição muitas vezes cedia uma mesa para que eu pudesse encadernar algumas dúzias de exemplares. O passo seguinte era ir à agência do Correio, pegar uma fila – pequena, pois a cidade também não era tão povoada quanto é hoje – e finalmente encaminhar seus exemplares para vários pontos do Brasil e do exterior, onde tinha contatos e leitores fiéis.

Este ritual proporcionado pela produção artesanal já não existe hoje. Tudo ficou mais automatizado, industrializado e, consequentemente, frio e distante. São raros os fãzines produzidos naquela época que sobreviveram ao passar do tempo. Raros. Por que sobreviveram? Porque são feitos por pessoas apaixonadas por este ofício de ler, pesquisar, editar e difundir histórias, compartilhando com outros iguais.

A revista “Cinemin”, assim como os fãzines que produzíamos nas décadas de 1980 e 1990, não era escrita por profissionais do jornalismo em sua maioria. A revista era produzida por aficionados por cinema e apaixonados pelo fazer cinematográfico. Por fãs das estrelas de todo porte. Embora pareça um discurso antiquado, esta observação é a mais pura verdade porque nas páginas da revista constavam não apenas autores de artigos sobre cinema e suas estrelas, mas pessoas que, além de fãs de uma temática ou personalidade ou colecionadores de tudo o que possamos imaginar, eram pessoas boas de texto.

Copydesk de Saulo Adami.

Seus colaboradores tinham conhecimento da crônica cinematográfica e habilidade como redatores de artigos de fôlego! Alguns colaboradores, é evidente, tinham mais habilidade do que outros, na composição dos textos. Mas, ninguém escrevia mal, nem abreviava, nem fazia piadinhas enquanto tratava de temas sérios e relevantes. Ninguém produzia páginas de fofoca, não perdia tempo produzindo informação inútil. Até porque havia Fernando Albagli, um editor profissional interessado em fazer da revista uma referência nacional, tanto para os fãs quanto para a indústria cinematográfica brasileira.

Quanto a evoluir ou involuir, acredito que seja pertinente a cada um. Hoje, escrevo e coordeno a coleção “TV Estronho” – livros que resgatam a história de séries de televisão de todos os tempos – para a Editora Estronho, de São José dos Pinhais, Paraná. Trabalho com entusiasmo nestes títulos, escrevendo, coordenando e orientando outros autores. A TV Estronho entrou no ar em junho de 2016, com “Perdidos no Espaço” – escrito em parceria com Carlos Gomes – e seus próximos episódios serão “Shazan-Xerife & Cia.”, “Kung Fu” e “O Incrível Hulk”.

Gosto de gostar destas séries, sou grato ao editor Marcelo Amado por me proporcionar este privilégio porque nós fazemos parte de um grupo de pessoas que merece ser estudado com rigor científico: o grupo dos nerds. Não tenho nenhum problema em assumir este rótulo – já que, não tendo nenhum, alguém sempre encontra um para nos imputar. O que me agrada nesta possibilidade de escrever e coordenar a coleção é que estamos produzindo livros com temática inédita no Brasil falando de universos ficcionais que, embora sejam séries lançadas há 30,40 ou 50 anos, estão anos-luz à frente destas bobagens que assistimos hoje na televisão (a cabo ou não) ou no cinema, onde se privilegia o espetáculo visual e o besteirol em detrimento de uma boa história para contar.

O - Qual a importância de se ter uma revista como a "Cinemin" para a cultura nacional?

S - É fundamental. Hoje, qual a revista especializada em cinema que temos circulando no Brasil? O que temos são revistas que vendem algumas ideias, reportam superficialmente o que há em um filme, trazem a programação da TV por assinatura ou se esmeram mais em futilidades do que se dedicam a de fato informar o leitor.

Substituem notícias de bastidores por entrevistas-relâmpago sobre disse-me-disse. Não leio estas publicações. Quem as lê certamente encontra pouca informação – ou quase nada – sobre o cinema nacional, imagine da cultura brasileira.

Porém, ainda há, mesmo nestas publicações sofríveis, alguns redatores que gosto de ler e com os quais, sempre que possível, gosto também de conversar, mesmo via virtual. Aliás, a via virtual sempre ajudou meu trabalho, e certamente teria ajudado a manter a “Cinemin” circulando, caso tivéssemos tido este reforço ou apoio nas décadas de 1980 e 1990. Sim, acredito que a revista poderia ter tido outro futuro.

“Cinemin” dava espaços generosos ao cinema nacional, incluindo algumas capas, reportagens de bastidores e artigos especiais. Recordo com carinho do artigo que escrevi sobre “A ditadura brasileira vai ao cinema”, que rendeu algumas correspondências endereçadas à minha caixa postal. Havia, inclusive, preparado outros textos sobre cinema brasileiro, mas não tive oportunidade de publicar porque a revista saiu de circulação. Mas, de qualquer modo, “Cinemin” cumpriu com honras o seu papel.

Matérias de Saulo Adami na "Cinemin".

O - Qual você considera que é o legado da "Cinemin", do esforço conjunto desses profissionais, para o cinema brasileiro?

S - Quando se fala em cinema, logo nos vêm à mente imagens de uma indústria que não é a nossa, mas a norte-americana. Quando abríamos um exemplar da “Cinemin”, sabíamos que encontraríamos alguma resenha, alguma notícia, alguma referência ao cinema nacional.

Os conteúdos eram produzidos por brasileiros para brasileiros, mesmo que os artigos tratassem de filmes, personagens e temas estrangeiros. A revista cobria a realização dos festivais de cinema de todos os portes, de todas as regiões brasileiras. Defendia a preservação da memória do cinema nacional e se empenhava em dar visibilidade à produção brasileira.

Acredito que a revista não fosse lucrativa para a Editora EBAL, que mesmo assim a manteve circulando enquanto foi possível, às vezes até com prejuízo – em respeito ao leitor. Mas, teve um dia em que foi obrigada a parar.

Fernando Albagli, editor da "Cinemin".

O ponto final foi comunicado pelo editor Albagli, que me mandou uma carta de próprio punho, datada de 5 de julho de 1994: “Por enquanto, infelizmente, “Cinemin” parou de ser publicada. Erro meu – e grave – não ter lhe comunicado antes. Obrigado pelas suas colaborações e pela amizade e carinho”. Ponto final.

Junto com o manuscrito, recebi de volta meus dois artigos não publicados: um sobre a maquiagem no cinema e outro sobre o diretor Franklin J. Schaffner, que haviam passado pela revisão e estavam prontas para ser impressas.

Restaram as lembranças – todas boas! – de um tempo que não volta mais, dos esforços de um conjunto de profissionais que, acima de tudo, amava – alguns já partiram – o que fazia, um amor que ia muito além do simples gosto de assistir filmes. O cinema brasileiro deve se orgulhar da “Cinemin” tanto quanto a revista e seus colaboradores são gratos às pessoas que diariamente escrevem a história do fazer cinematográfico.


Bibliografia de Saulo Adami na "Cinemin":

– “Perdidos no Planeta dos Macacos (Parte 1)”. In: “Cinemin”, nº 60, janeiro de 1990, páginas 27-29.
– “Perdidos no Planeta dos Macacos (Parte 2)”. In: “Cinemin”, nº 61, fevereiro/março de 1990, páginas 32-34.
– “A Aventura Continua”. In: “Cinemin”, nº 62, abril/maio de 1990, páginas 29-31.
– “Jornada nas Estrelas”. In: “Cinemin”, nº 67, dezembro de 1990/janeiro de 1991, páginas 13-17.
– “A Ditadura Brasileira Vai ao Cinema”. In: “Cinemin”, nº 69, março de 1991, páginas 4-6.
– “Maurice Evans”. In: “Cinemin”, nº 69, março de 1991, página 42.
– “Franklin J. Schaffner”. In: “Cinemin”, nº 69, março de 1991, página 42.
– “John Ireland”. In: “Cinemin”, nº 81, janeiro/fevereiro de 1993, página 43.
– “Albert Salmi”. In: “Cinemin”, nº 81, janeiro/fevereiro de 1993, página 43.
– “Charlton Heston”. In: “Cinemin”, nº 84, julho 1993, páginas 37-39.

Matéria de Saulo Adami na "Cinemin".
“Eu preciso ligar pro Albagli!”

Saulo Adami

Eu já não aguentava mais ler a revista “Cinemin” e não encontrar um texto de fôlego sobre meu filme favorito, “O Planeta dos Macacos” (1968), de Franklin J. Schaffner. Havia comprado na banca de jornal da praça Barão de Schneeburg, centro de Brusque, Santa Catarina, uma das últimas edições de 1989, e lido tudo o que me interessava saber – e até o que eu nem queria saber – sobre novidades da Sétima Arte e artigos saudosistas assinados por colaboradores que eu admirava, que eram jornalistas, colecionadores, pesquisadores e invocados como eu!

Quer saber? Eu preciso ligar pro Fernando Albagli! Isso mesmo, vou ligar para o Albalgi e perguntar se a equipe de redação da “Cinemin” tem alguma coisa “contra os meus macacos”! Disquei o número e aguardei. Um toque... dois toques... trê-...


– Editora EBAL, boa tarde!

– Eh... Boa tarde! Meu nome é Adami, estou ligando de Santa Catarina. Gostaria de falar com o editor da revista “Cinemin”: Fernando Albagli.

– Boa tarde, você está falando com ele mesmo. Em que posso ajudá-lo?

Foi um privilégio conversar com o editor da minha revista preferida. Foram uns 15 minutos de conversa, até que finalmente entrei no assunto principal. Foi quando ele soube que eu trabalhava como jornalista e que estava escrevendo um livro sobre os bastidores e segredos de “O Planeta dos Macacos” no cinema e na televisão.

– Por que você mesmo não escreve um artigo sobre a sua série de filmes favorita e envia para nossa avaliação?

Em alguns dias, o artigo estava pronto, revisado, impresso e envelopado com destino ao Rio de Janeiro! Mais alguns dias, veio a confirmação de que o texto fora aprovado para publicação, no início de 1990, em duas partes.

Assim começou minha colaboração com “Cinemin” que, para minha surpresa, remunerava seus colaboradores! De vez em quando, tão logo a edição chegava às bancas, aparecia na minha caixa postal um cheque nominal referente às minhas colaborações. Não era muito, mas era o meu primeiro salário como colaborador de uma revista de circulação nacional – a minha revista favorita!

A empresa era organizada, a comunicação principal era por cartas, pois eu ainda não tinha acesso à Internet. Cada vez que tinha um artigo publicado, recebia meu exemplar pelo Correio. Quando o revisor tinha dúvidas, fazia contato, enviava uma carta pedindo ajustes ou telefonava. Aos poucos, fui me sentindo de fato parte da equipe.

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