Um peixe fora d’água. O animal se debate na estrada de terra, buscando salvação em meio à poeira. A cena de A Cidade do Futuro é intrigante, sem conexão aparente com o restante da trama. Mas como metáfora, sintetiza perfeitamente a temática do filme.
O longa de ficção dos diretores Cláudio Marques e Marília Hughes é ambientado no município de Serra do Ramalho, norte da Bahia. Batizada na época de “A Cidade do Futuro”, a localidade foi formada nos anos 1970 com a vinda de 20 mil famílias desalojadas pela ditadura militar para a construção da barragem de Sobradinho. Os ribeirinhos foram expulsos da margem do São Francisco com a promessa de uma vida melhor, mas acabaram isolados e esquecidos a mais de 20 quilômetros de distância do rio.
Quarenta anos depois, conhecemos a história de Gilmar (Gilmar Araújo), Milla (Milla Suzart) e Igor (Igor Santos), moradores de Serra do Ramalho e descendentes dos desabrigados. Gilmar é professor de história do ensino médio em um colégio público. Ele mantém um relacionamento aberto com a sua colega de trabalho Milla, que leciona teatro na instituição, e com o vaqueiro Igor. Quando Mila fica grávida de Gilmar, o triângulo amoroso acaba exposto e é alvo do preconceito da cidade provinciana. Os três se tornam excluídos em uma terra de excluídos, como o peixe que Igor encontra no meio do sertão.
Seria poético, se não fosse trágico. Realidade e ficção se misturam na obra baseada na história real de Gilmar, Milla e Igor, que estreiam no cinema interpretando versões de si mesmos. A ideia original de A Cidade do Futuro era a de um documentário sobre os impactos das obras de Sobradinho – tanto que a narrativa é entrecortada por reportagens de época e depoimentos dos primeiros colonos –, foi durante as pesquisas para a produção que os diretores conheceram o trio e resolveram reorganizar todo o projeto.
A Cidade do Futuro é o segundo longa dirigido pela dupla, que estreou em 2013 com Depois da Chuva. Mas a parceria do paulista Cláudio e da baiana Marília já segue a mais de oito anos, trabalhando como organizadores do Panorama Internacional Coisa de Cinema, realizado anualmente em Salvador (BA). Em entrevista ao TELA BRASIL, Marília Hughes revela um pouco dos bastidores da produção, que foi eleita este ano como o Melhor Filme pelo Público no V Olhar de Cinema, em Curitiba, e ganhou os prêmios de Melhor Filme e Melhor Direção no 10º For Rainbow, em Fortaleza.
Como é a dinâmica de dirigir em dupla?
É o segundo longa em parceria, mas já dirigimos juntos sete curtas-metragens, além de oito edições do Panorama. Já há uma boa estrada, juntos. Nos conhecemos bem e acima de tudo temos afinidades no modo de encarar o mundo. O que é muito importante na construção de uma história. Mas também vejo nossas habilidades de modo complementar. Cláudio tem uma maior facilidade com a escrita e com os atores, e eu com a imagem. Mas estamos sempre conversando sobre tudo, sobre todas as fases e decisões.
O filme tem fortes características documentais, os protagonistas Milla, Igor e Gilmar foram inspirados em alguma história real? De onde surgiu a ideia da trama?
Sim, o filme é uma ficção, mas tem inspiração na realidade. De fato, Milla, Gilmar e Igor formam uma família fora dos padrões, mas recriamos a história deles a fim de construir um filme. Eles são os atores desse filme. É assim que o tratamos o tempo todo. Chegamos a Serra do Ramalho por causa de um documentário que estávamos fazendo sobre Sobradinho. Chegamos lá e percebemos que o futuro prometido não estava na cidade, que repetia o mesmo roteiro de falta de infraestrutura e oportunidades que marca o interior da Bahia. Mas esses jovens nos chamaram atenção. Eles de um modo muito corajoso quebravam com padrões e preconceitos de um lugar marcado pela imagem do sertanejo macho e valente.
O filme é político e não esconde isso. Vocês tiveram receio em levantar tantos questionamentos, como a luta pelas liberdades individuais, contra a homofobia e a questão das barragens, em um único filme?
Não, nunca tivemos esse receio. O filme não se pretende um manifesto ou um panfleto. As escolhas dos personagens foram afetivas, feitas com base no amor, no desejo, e não porque eles queriam quebrar convenções. Mas eles quebram convenções e isso incomoda. As lutas às quais você se refere estão entrelaçadas, fazem parte da história dos personagens. Eles são filhos de pessoas que foram retiradas à força de seus lugares de origem. E esses jovens, por outras questões, não aceitam a pressão que sofrem para sair do lugar que nasceram. Uma coisa reflete na outra de maneira muito natural. Mas não queremos esgotar nenhuma dessas questões. Mas contar uma história, onde tudo isso está presente. Podemos dizer que “A Cidade do Futuro” atualiza as questões dos direitos civis no Brasil.
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quinta-feira, 24 de novembro de 2016
“A Cidade do Futuro” mistura ficção e documentário para retratar triângulo amoroso no interior da Bahia
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