quinta-feira, 30 de julho de 2015

Resenha de Seriado: Sense8 – Primeira Temporada


sense8
Sense8 – O Poder da Diversidade

J. Michael Straczynski talvez seja um dos melhores e mais bem sucedidos escritores do gênero de ficção científica e de quadrinhos de sua geração. Na televisão suas contribuições também não são nada pequenas. Em uma época na qual CGI ainda engatinhava e séries de ficção preferiam não ousar em roteiros – para evitar que os “defeitos” especiais fizessem das séries pastiches kitsch – Straczynski nos brindou com Babylon 5. Talvez uma das melhores séries do gênero.

Assim, foi com uma peculiar expectativa que a notícia de que o celebrado autor estava a bordo de um novo projeto na televisão a foi recebida. A peculiaridade da expectativa pode ser justificada pois nesse caso seu sobrenome de difícil pronúncia estava diretamente associado a outro sobrenome não menos difícil de pronunciar: os Wachowski. E os Wachowski dividem o mundo da cultura pop coma as mais diversas opiniões acerca de sua obra.

Os Wachowski tomaram o mundo de assalto com Matrix e desde então – considerando o critério de qualidade – a sua carreira teve altos e baixos. As sequências de um dos mais importantes filmes da década de 90 deixaram a desejar em relação ao primeiro. Mas a série de curtas em animação Animatrix, produzidos pela dupla, definitivamente estabeleceu o Anime nas terras do Tio Sam, além de ser uma obra de incontestável qualidade estética. Depois vieram Speed Racer (visualmente deslumbrante, e apesar de fracassar nas bilheterias, uma das adaptações de transposição entre mídias mais bem resolvidas da cultura pop) e Cloud Atlas (também mal recepcionado pelo público, mas uma ode ao amor à poesia e ao arrebatamento estético que liga a humanidade em uma perspectiva transcendental). Sua mais recente obra, Jupiter Ascending, teve alguns problemas de elenco, mas no geral é uma ficção científica que sabe trabalhar bem temas morais e filosóficos, que se encontram no cerne de qualquer obra do gênero.

Mas independentemente de qualquer crítica aos Wachowski uma coisa não se pode negar sobre a dupla de irmão e irmã: poucos conhecem tanto a cultura pop quanto eles; e poucos conseguem agregar tanto dessa cultura a seus trabalhos quanto eles, sem abrir mão de um subtexto bastante próprio da ficção científica que envereda na direção de questionamento filosóficos de cunho moral, religioso e sociais dos mais relevantes. E os Wachowski o fazem com um domínio profundo da sua linguagem, o cinema, e com a consciência de que, em nosso mundo contemporâneo, a mensagem se transmite em diversos níveis, e a imagem, a estética e plasticidade devem servir à narrativa de uma forma dinâmica, fluída e deslumbrante.

O estilo muito próprio dos Wachowski por vezes tem que fazer concessões à máquina industrial de Hollywood, e isso deve ser um dos elementos que mais prejudica seus trabalhos. Não é fácil resistir aos ditames do mercado de consumo, principalmente quando se busca deixar sua marca e desenvolver suas próprias ideias. Dito isso, um dado que ampliava consideravelmente a expectativa em torno do projeto anunciado conjuntamente com Straczynski dizia respeito à plataforma envolvida: a Netflix.

A Netflix, como se sabe, tem revolucionado o mercado de conteúdo audiovisual em todo o mundo por privilegiar bastante a liberdade: liberdade de consumo de seus consumidores e liberdade criativa de seus criadores. As séries produzidas diretamente pela empresa têm se destacado acima de tudo pela qualidade, justamente pelo fato dos executivos da empresa não interferirem a todo momento nas produções com o intuito de atender a pretensos anseios do mercado. É um novo modelo que felizmente parece vir apenas para nos dar mais e mais entretenimento de qualidade e que impulsiona todo o mercado a ter que considerar uma ampla mudança.

As temporadas de séries da Netflix são produzidas e entregues ao canal já prontas e a audiência tem acesso imediato a todo o conteúdo da temporada. Na prática é como se fosse um grande longa metragem com uma média de 10 a 12 horas de duração. E isso propicia a referida liberdade criativa. Liberados da necessidade de atender as demandas por pontos de audiência semanalmente – como ocorre ainda nas plataformas tradicionais – os criadores e desenvolvedores são capazes de explorar uma narrativa tendo como principal objetivo “contar uma boa história”. E isso, evidentemente, traz consequências negativas e positivas.
No caso de Sense8 é satisfatória a constatação de que no fim das contas o lado positivo supera bastante o lado negativo. Os Wachowski e Straczynski nos presenteiam com uma bela série que alinhava uma premissa de ficção científica bastante razoável e verossímil e que serve como um pano de fundo muito apropriado narrativamente para discutir questões tão importantes para a humanidade no século XXI, tais como: diversidade, identidade, amor e acima de tudo a própria noção de humanidade; e a brutalização de nossa sociedade, da qual somos vítimas e ao mesmo tempo principais algozes.

Sense8 é uma espécie de jogo de palavras e sentido que diz muito sobre a série. Há uma referência expressa ao grupo de 8 personagens principais da série e também ao termo utilizado na trama para se referir a estes: Sensates (“sense” e “eight”) ou Sensatas são um tipo especial de seres – aparentemente um ramo distinto da evolução da espécie humana – que possuem a capacidade de compartilhar entre si sentimentos, pensamentos, conhecimentos e habilidades sem qualquer limitação geográfica. Os Sensatas se conectam uns com os outros a partir dos mais diferentes lugares do mundo, sem mesmo que precisem terem sequer se encontrado pessoalmente, através de um processo biológico que é apenas vagamente referido no primeiro episódio como “ressonância límbica”. Essa ressonância é um processo natural – e não sobrenatural -, todavia os homo sapiens não desenvolveram a capacidade de utilizar esse processo para se conectar ao que pode ser compreendido como uma imensa rede que uniria todos os seres sensientes. Os sensatas naturalmente possuem esse sentido mais desenvolvido, o que lhes permite utilizar a ressonância límbica para se conectar uns aos outros.

É ainda possível depreender que o termo Sense8 evoca a ideia de um oitavo sentido – além do sétimo sentido já defendido por alguns estudiosos e já bastante explorado na ficção – e que parece apontar para uma dimensão eminentemente inter-relacional. Essa ideia evocada diz muito sobre o argumento base da série e revela bastante sobre a capacidade de Straczynski de criar bons conceitos narrativos de ficção científica e a partir daí desenvolver um cenário de forma coesa e com sentido. Afinal, como se percebe, Sense8 não parte de uma premissa ficcional exagerada, mantendo assim, como já se disse, um tom bastante sóbrio e, portanto, mais verossímil. Os sensatas não são mutantes no sentido “X-men”. Nem mesmo são seres com capacidades psíquicas superdesenvolvidas ou sobrenaturais. Não são Alfas ou coisas do gênero desenvolvidas em laboratório. Nada disso. Eles são apenas seres que possuem uma nova dimensão dos sentidos com um amplo potencial. Talvez, como dito, não exatamente homo sapiens, mas, em muitos sentidos tão ou mais humanos do que boa parte da humanidade, justamente por resguardarem uma capacidade empática da qual o homo sapiens parece vir progressivamente se afastando ao longo da evolução da espécie. Os sensatas são assim, pessoas comuns. E suas habilidades poderiam ser comumente confundidas com distúrbios psiquiátricos ou neurológicos e assim, evidentemente, isso logo se torna um dos principais plots da narrativa da trama.

Alguns sensatas parecem poder se agrupar em uma espécie de “organismo” maior que na série é chamada de “cluster”. O termo utilizado também reforça a premissa natural, principalmente quando na série há analogias expressas com outros organismos vivos da natureza que se organizariam de forma similar. E é a um cluster específico que somos apresentados logo no primeiro episódio. A bem da verdade testemunhamos uma outra Sensata (Angélica, interpretada por Daryl Hannah) “dar à luz” a um novo cluster de oito Sensatas para logo em seguida tirar sua própria vida a fim de protegê-los do assustador vilão da série, o senhor Sussurros. A todo momento Sense8 joga com o tema das emoções, relacionamentos e da humanidade, mas os temas de nascimento e morte também ocupam um espaço muito importante na série, para uns mais personagens mais do que para outros.
E assim, finalmente, somos apresentados aos oito protagonistas da série à medida que estes – separados por mundos de distância – passam a progressivamente se relacionar e se conhecer num nível inconsciente e consciente. E é justamente na quantidade de protagonistas – ou melhor dizendo, de personagens, pois nem todos são exatamente protagonistas a princípio – que reside uma das grandes fragilidades da série a princípio. Dito de maneira bem direta, a série demora a engatar. E a quantidade de personagens e a sua diversidade, associadas à proposta geral da série e ao seu tom são os principais responsáveis pela lentidão da narrativa na primeira metade da série.

Assim como essa crítica demora muito para chegar ao seu ponto, a série também o faz. Sendo objetivo, a série começa a ficar mais dinâmica a partir da sua segunda metade; sendo mais preciso, entre o sexto e o sétimo episódio, após a maior parte das bases narrativas dos personagens já terem sido devidamente lançadas. Mas na mesma medida, como se percebe logo a seguir, sem o tempo “perdido” na preparação o efeito não seria o mesmo. Em suma, basta ter um pouco de paciência que a série logo chega no ponto onde os fãs de ficção científica, dos Wachowski e de Straczynski esperam que chegue. Basta aguardar que seu tempo dedicado será devidamente recompensado. Pois Sense8 seria apenas mais uma série genérica do gênero se não desenvolvesse com cuidado as intimidades, as diferenças e a diversidade de cada personagem. Aliás, diversidade é a palavra chave por trás dessa série. Sua grande mensagem e a grande força dos Sensatas.

Claro que a opção por diversos personagens prejudica. E narrativamente o preço é cobrado. Não apenas pelo tempo “perdido” já apontado. Mas também porque nem todos os personagens conseguem se desenvolver bem. Algumas vezes por limitações dos atores. Outras vezes por uma opção narrativa mesmo. Em determinado momento os produtores da série precisam fazer escolhas para que a trama possa avançar e não se tornar algo muito similar a uma telenovela latina. Mas isso é natural em qualquer narrativa.

Demoramos para entender bem quem são cada um dos Sensatas do Cluster protagonista. Will (Brian J. Smith, de Stargate Universe) é um policial de Chicago com um passado traumático envolvendo o desaparecimento de uma outra criança com a qual ele travou uma relação bastante peculiar; Nomi (Jamie Clayton, de Hung) é uma transexual que vive em São Francisco com sua namorada Amanita e que tem um passado nebuloso envolvendo atos de ativismo cibernético; Riley (Tuppence Middleton de Jupiter Ascending) é uma DJ islandesa que vive em Londres, e que busca se isolar de um passado trágico; Sun (Donna Bae de Cloud Atlas) é uma empresária sul-coreana com problemas de relacionamento com o pai que usa as artes marciais para destilar toda sua frustração e ressentimento através dos punhos; Capheus”Van Damme” (Aml Ameen de Maze Runner) vive em Nairóbi no Quênia e luta, desde sua infância, pela sua sobrevivência e de sua mãe – portadora de HIV e sem medicamentos para combater o avanço da doença – em um país esquecido pelas grandes potências e produto da extrema desigualdade mundial; Lito (Miguel Ángel Silvestre de Os Amantes Passageiros) vive na Cidade do México e é um astro de filmes de ação que precisa esconder sua orientação sexual por temer prejudicar sua carreira; Kala (Tina Desai de O Exótico Hotel Marigold) é uma jovem cientista indiana que vive em Mumbai na Índia e busca, em meio a conflitos religiosos, encontrar respostas sobre a escolha certa a se fazer acerca de seu futuro casamento; Wolfgang (Max Riemelt de A Onda) vive em Berlim, e busca lidar com um passado de abusos em uma família de criminosos enquanto tenta encontrar seu caminho e provar a si mesmo seu próprio valor. Como se pode perceber, um grupo bastante diverso. A mensagem é bem clara. É a diversidade, com todos os seus problemas e percalços, que nos torna mais humanos.

Mas é claro que tanta diversidade não passa impune. Assim como no nosso cotidiano, logo surgem os antagonistas empenhados em caçar e perseguir os sensatas por aquilo que eles são. Por medo daquilo que eles representam. É preferível não falar muito sobre o antagonista principal o Sr. Sussurros (Terrence Mann). Basta dizer que Terrence Mann se destaca em sua interpretação, e que a sutileza e aparente onipresença e irremediabilidade do personagem o tornam um dos personagens antagonistas mais interessantes que a teledramaturgia nos presenteia em tempos. Ele aparece pouco, mas está sempre lá. Sua presença sempre orbitando em torno do Cluster formado pelos oito personagens principais.
Como já citado, a vida desses oito personagens se liga de maneira indissociável a partir do momento em que Angélica (Daryl Hannah), uma outra sensata, os liga uns aos outros, ativando ou potencializando suas habilidades de sensatas sempre presentes, todavia latentes, os transformando em um cluster. Membros de um mesmo cluster compartilham as emoções e habilidades uns dos outros, como falamos. E dessa premissa bastante sagaz é que a série tira sua força e suas melhores situações e desenvolvimentos. Capheus e Sun lutam como um em uma das melhores cenas do seriado, na qual os Wachowski atestam toda a sua habilidade em dirigir cenas de luta com muita ação, estética e clareza. E a medida que esse artifício vai sendo explorado é que a série ganha mais ritmo e se torna mais dinâmica, envolvente e interessante. O que funciona muito bem graças a grande capacidade de Straczynski em criar e desenvolver bons cenários e estruturas narrativas. Não faltam também a presença de bons e velhos colaboradores dos Wachowski como Tom Tykwer (Corra Lola, corra) e James McTeigue (V de Vingança), deixando sua marca em excelentes direções de episódios e na trilha sonora.

Dramas pessoais também ganham uma outra proporção quando se trata de uma relação que envolve oito indivíduos que compartilham emoções. E a série também consegue trabalhar com isso de maneira satisfatória. Percebe-se nos diálogos que as conversam entre os sensatas são envoltas em um profundo senso de intimidade. As respostas que uns provém aos outros sempre são as mais apropriadas sem serem as mais óbvias, e sempre se mantendo em mente que, ainda que ligados, uns não são iguais aos outros. O texto vai além do óbvio, nesse sentido, e também entrega um bom resultado.

Também não falta força estética a Sense8. Tanto nos detalhes de fotografia, figurino e cenários – que expressam com clareza a diversidade proposta pela série – quanto no sentido. A relação entre emoções e experiência estética são muito bem exploradas, particularmente em um determinado episódio no qual uma apresentação musical ocupa o palco central, e interliga todos os personagens em um jorro desenfreado de sensações, que empurra a série em direção ao seu clímax. Mais uma vez as grandes revelações são íntimas. E são elas que fazem a diferença. Claro que descobrimos algo mais sobre os Sensatas, suas habilidades e o misterioso Sussurros. Mas ainda há muito mais que se explorar. Sentimos que nos deparamos apenas com a ponta de um iceberg, e que Sense8, em matéria de roteiro, tramas de ficção científica, e reviravoltas, ainda podem nos brindar com belas surpresas nas temporadas vindouras. E espero que venham mais algumas. É raro ver uma proposta tão ousada ser tão bem executada e conseguir um resultado tão satisfatório, impactante, e ao mesmo tempo sutil e delicado. Tudo em Sense8 é sempre um tom abaixo. Até a hora em que finalmente explode em um jorro orgástico. E grupal.

Texto de Mário Bastos

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