Dívida de Honra (The Homesman - 2014)
É um aspecto comum do cinema, quando tenta criar uma personagem feminina forte, adicionar em sua composição vários elementos compartilhados pelos heróis, invariavelmente masculinizando a mulher, tornando-a bruta e insensível, ao invés de evidenciar a bravura inerente à sua feminilidade. Como a Ellen Ripley, de “Aliens – O Resgate”, ou, num exemplo recente do gênero, a menina da refilmagem de “Bravura Indômita”, ainda que exista uma função dessa atitude em sua origem literária, já que ela adota psicologicamente a personalidade do pai que busca vingar. Já a Mary Bee, vivida por Hilary Swank, é o extremo oposto, um inteligente modelo de construção de personagem. Ela é uma mulher madura que sobrevive sozinha no Velho Oeste, enfrentando o preconceito da sociedade machista, rejeitando a subserviência ao provar competência em seu trabalho, porém, como uma alma sensível, capaz de aliviar as angústias diárias tocando imaginariamente as teclas de um piano bordadas em tecido, ela deseja ser verdadeiramente amada.
O cenário rude, desolado, reflete metaforicamente a negação da sensibilidade, um berço de homens estúpidos que cospem suas mulheres de suas vidas, ao primeiro sinal de problema, figuras vistas como minimamente humanas, dispensáveis. Ao se dispor à difícil tarefa de conduzir três mulheres que perderam a sanidade, por conseguinte, impiedosamente despejadas por seus maridos, até uma cidade onde irão receber tratamento, Mary ousa vestir o manto de sacrifício por uma causa cujo escopo sequer poderia compreender. A alegoria é potencializada pela brutalidade que Tommy Lee Jones, enquanto diretor, não se intimida de mostrar. Cenas muito fortes, como uma protagonizada por Miranda Otto e um bebê, logo no início, exibem a coragem de um roteiro que não intenciona suavizar o impacto de sua mensagem, infelizmente ainda vergonhosamente atual. A revoltante repetição do ato do estupro com uma das mulheres doentes, incapaz de reagir, enquanto outra, que testemunha a violência, conscientemente silencia, assim como a automutilação, filmada com chocante frieza, ou as tentativas humilhantes da protagonista que tenta se adaptar às pressões comportamentais e encontrar um marido, estão dentro do contexto da época, porém falam diretamente ao papel da mulher hoje, cerca de cento e cinquenta anos depois, vítima de uma balança social que nunca se equilibra, nos mais variados setores.
O personagem de Jones aparece exatamente na cena seguinte à reza do sacerdote, que pede proteção a Mary em sua árdua jornada, uma resposta certa encaminhada por linhas tortas de caráter, o símbolo máximo, quase caricato, do machismo, alguém que despreza o feminino a ponto de inicialmente rejeitar a hipótese de consumar uma noite de amor com Mary, desprezando-a até como imediatista objeto sexual. Ele não odeia a mulher, apenas sente profunda indiferença. Na cena, ele se despe com desleixo e preguiça, salientando seu total desinteresse em repensar sua conduta. Ela, por outro lado, havia demonstrado na cena em que consegue estabelecer conexão emocional com uma das vítimas, após gentilmente abraçar a ilusão que a mantém viva, a disposição libertária para a mudança de pensamento. Ela, a mulher na sociedade, está aberta à discussão, mais preparada que qualquer homem. Ele, o machista impotente, segue surdo aos pedidos de respeito e igualdade. O faroeste é utilizado então como veículo estético para uma trama que nos conduz à gradual percepção desse homem, o Adão desencantado, que aprende a conviver com o feminino. Evitando revelar muito da trama, vale ressaltar a beleza metafórica da linda cena no rio, que representa o gatilho dessa mudança, um dos momentos mais singelos e bonitos que vi nos últimos anos. Grande parte do mérito se deve também à impecável trilha sonora de Marco Beltrami.
“Dívida de Honra” é, desde já, um dos melhores filmes do ano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário