O clima de mistério. O não entendimento das regras dos lugares. Uma completa perda de noção temporal. A sensação de que alguma coisa foi perdida e que não se poderá nunca mais recuperar. As obras de Kafka se realizam assim: mais na atmosfera que no conteúdo, mais no que escapa do que naquilo que está no papel. É este o grande trunfo do autor nascido em Praga: descobrir a modernidade por dentro de suas entranhas, assumindo ao mesmo tempo o gesto radical de ser anacrônico, realista, antiquado, e conseguir projetar uma perda irrecuperável na subjetividade dos sujeitos.
Esta é a premissa que o grupo Teatro Voador Não Identificado (link: aqui! ) se baseia para montar seu quarto espetáculo: colocar o ator na mesma situação em que as personagens kafkianas. Tendo como ponto de partida a obra O Processo de Franz Kafka, a peça teatral (com estreia prevista para dia 1º de Novembro no Rio de Janeiro) tem o seguinte formato: seis atores ensaiam o espetáculo inteiro, decoram suas falas, marcações, situações cênicas e até posicionamento nas luzes. A diferença está no fato de que diariamente um ator será convidado para interpretar a personagem principal da obra, Josef K, e ele encenará sem saber absolutamente nada. Sem ensaios, sem fala, sem movimentação fixada, este ator receberá apenas duas informações: 1- Entrar no palco e dizer quem ele é, e de onde ele vem. 2- Contar que personagem ele fez e que instruções ele recebeu. O resto é com os demais atores.
Já o espetáculo teatral, com dramaturgia de Luiz Antonio Ribeiro (por acaso, eu que escrevo agora), foi todo construído em um espaço de dupla possibilidade: por um lado, um arquivo fechado, completo, inteiro, que pode seguir eternamente sem a intervenção do ator convidado; por outro, uma fenda repleta de aberturas para que qualquer tipo de novidade, improviso e possibilidades novas possam integrar, adentrar e se tornarem parte da obra. Assim, a cada dia veremos um mesmo espetáculo e um espetáculo diferente. A cada situação, uma reação diferente e uma conclusão em aberto. Algumas vezes, os atores serão sufocados; em outras, irão sufocar.
O diretor Leandro Romano optou por uma direção fluida, mas ao mesmo tempo voraz. Os atores, cuja atenção é cobrada ao extremo, uma vez que eles devem estar ligados em cada gesto e palavra do ator convidado, devem reencenar aquilo que nos livros kafkianos fica latente: a máquina se impõe sobre o sujeito, os papéis sociais dizem mais do que os afetos. É o que destaca o ator Alonso Zerbinatto:
“O Processo é, para mim, um lugar de cisão entre corpo e mente. O corpo está ali, ficcionalizando, produzindo discursos e imagens, enquanto, todo o tempo, a cabeça indaga: e agora? Hein? Hein? E agora? A presença do ator convidado é tão confortante quanto aterrorizante – sem ele, não existimos; com ele, estamos fadados ao fracasso. Qualquer coisa, qualquer ideia, qualquer ato que pretendamos cumprir, não se dará. Sendo assim, qual é o trabalho? Construir o inconstruível? Programar o improgramável? Preparar-se para o abismo? Teremos mais quinze oportunidades de descobrir.”
Atingir esses objetivos não é tarefa fácil. A obra de Kafka parece se impor sobre as outras artes, no entanto, a ambiciosa iniciativa de tentar dar conta de um monumento da arte, dessacralizando-o, parece ser um grande caminho de descoberta de nossa modernidade, nossa memória e, claro, nossa individualidade. Se Kafka nos desmonta, o Teatro Voador Não Identificado ambiciona remontá-lo em cena, e expor o abismo de todos nós.
Para quem quiser conhecer mais sobre o grupo, acesse a página no Facebook:
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Se for do Rio de Janeiro, e quiser conferir o espetáculo, aqui está o evento:
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